quarta-feira, 6 de maio de 2015

José Roberto Afonso: "Estamos cortando o futuro” Isabel Clemente - Epoca

O ajuste fiscal está reduzindo investimentos, mas não o tamanho do Estado, diz o economista José Roberto Afonso


Em 2002, José Roberto Afonso colaborou na elaboração do programa de governo do PSDB para a campanha à Presidência da República. Decidiu que nunca mais faria isso. "Loucura a gente só faz uma vez na vida", diz, rindo, o economista de 53 anos, doutor e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. A experiência que não pretende repetir o ajudou, no entanto, a se tornar uma das vozes mais respeitadas no país quando o assunto é contas públicas. A ÉPOCA, Afonso afirmou que o tombo dos investimentos públicos, iniciado no ano passado, já anulou os ganhos da estratégia anticíclica pós-crise de 2008 – a tese do estímulo às estatais para compensar o retrocesso do restante da economia. Para ele, as medidas do ajuste fiscal estão cortando investimento e não reduzindo o tamanho de um Estado que arrecada demais, gasta demais e investe pouco. "É mais fácil deixar de crescer e comprometer o futuro do que enfrentar o passado", diz.

José Roberto Afonso (Foto: Andre Arruda/ÉPOCA)
ÉPOCA – Qual tem sido a relevância do 

investimento público para a economia brasileira?
José Roberto Afonso – As décadas perdidas coincidiram com retração de investimento público, que só voltou a melhorar depois da crise global, com a expansão das empresas estatais e maior presença de Estados e municípios. Ainda assim, a taxa de investimento do país seguiu baixa, na casa de 20% do PIB. Esse cenário foi desmontado a partir de 2014, quando o investido pelas estatais caiu 0.5 ponto do PIB. Não é pouco. Em um ano se perdeu o que tinha levado cinco anos para aumentar no pós-crise. A perspectiva para 2015 é dramática, caso se mantenha o constatado nas contas do primeiro bimestre: queda de 20% a 30% do investido por estatais e pelos governos travados pelo ajuste fiscal. Isso subtrairia mais um ponto (cerca de R$ 60 bilhões) do PIB. Como o investimento privado também está despencando, a taxa nacional pode voltar ao patamar de17% do PIB, das mais baixas da era do Real. O preço que se paga hoje pelo fracasso da política econômica anterior é alto. O remédio virou veneno. O maior desafio de nossa economia é inverter essa relação.
ÉPOCA – Da mesma forma que o investimento público multiplica seu efeito na economia, seria possível medir o efeito dessa redução?
Afonso – Sim. Segundo cálculos usados por técnicos do governo, o efeito multiplicador dos investimentos públicos seria de 1,5 vezes. Logo, aplicado na direção oposta, a queda dos investimentos das estatais no ano passado teria causado, como impacto indireto, um recuo adicional de 0,75 pontos do PIB, o que é muita coisa. E 2014 foi ano de eleição, quando, geralmente, o investimento governamental dispara. O baque maior veio da Petrobras, que sozinha representa 90% dos investimentos das empresas estatais. O erro foi usar Petrobras e Eletrobrás para combater a inflação.

ÉPOCA – A chamada política anticíclica – de combater recessão com investimento público – teria funcionado se não fosse a decisão de segurar os preços da energia e dos combustíveis?
Afonso – Sim. Ao usar Petrobras e Eletrobrás como instrumentos de combate à inflação, o governo prejudicou o caixa das duas empresas e travou o investimento. Derrubou também seu valor nas bolsas. No primeiro momento, elas até conseguiram investir mais, mas veio então o pior dos mundos. Elas precisaram se endividar para tapar deficits operacionais. Endividamento para investir é sadio, como colesterol bom, porque resultaria em mais produção e pagaria o custo da dívida. Só não foi o que ocorreu. Com exceção de 2009, quando se endividaram para investir, Petrobras e Eletrobrás gastaram para cobrir despesas correntes. Esse buraco nas contas, por mais que haja influência da corrupção detectada pela Lava Jato, veio da política de preços. Segurar preços de combustível e de energia elétrica é um erro em si? Não. Cabe a cada governo decidir. O erro é não mostrar à sociedade o quanto custa. Ao empurrar o que deveria ser um gasto público para as empresas estatais, o governo simula umsuperavit no orçamento, porque essas estatais ficaram de fora do controle da dívida pública. Essa foi uma das maquiagens usadas. E não precisa ser assim. Por exemplo: o governo muitas vezes compra estoque regulador de alimentos, e coloca no Orçamento federal tanto a dotação para comprar os estoques como os subsídios. No caso da energia e do combustível, as tarifas foram subsidiadas, mas ninguém ficou sabendo quanto custou. Agora sabemos: estamos pagando caro por isso. Sumiu a maquiagem e a feiura apareceu.
ÉPOCA – Com o ajuste fiscal, a tendência é o setor público enxugar investimentos, o que vai frear ainda mais a economia. É desse ajuste que precisamos?
Afonso – Nosso ajuste está passando mais por corte de investimentos e não de custeio. Cortar custeio significa diminuir o tamanho do governo enquanto que, ao cortar investimento, você está mexendo com o futuro. É mais fácil deixar de crescer e comprometer o futuro do que enfrentar o passado. Os Estados, por não terem tantas opções de financiamento, estão fazendo melhor o dever de casa cortando despesas. Os números do primeiro bimestre mostram um desempenho muito melhor do que o do governo federal. Tudo o que os Estados economizaram foi suficiente para pagar os juros das dívidas e ainda sobrou dinheiro em caixa. A União está apenas botando um freio no crescimento dos gastos correntes. Não é uma redução para valer.
ÉPOCA – Nem motivado pela crise o governo federal fala em enxugar a si mesmo?
Afonso – Não sei se o ministro da Fazenda não quer mexer nisso ou não consegue. No momento, estamos assistindo a bombeiros em ação para apagar o incêndio. Falta agora conhecer a estratégia para crescer. Tem que chamar os arquitetos, os engenheiros e reconstruir a casa incendiada. Não podemos viver de apagar incêndio. O ajuste precisa ser o meio e não um fim em si. Precisa deixar a vida seguir. Não basta cortar. O maior desafio que temos hoje é retomar o crescimento. Se o setor público não será mais a locomotiva, quem vai puxar esse trem? Precisamos enxergar para onde vamos crescer porque aí está o problema. A Standard & Poors rebaixou a nota do governo do Estado do Rio e o principal motivo foi queda da receita, ou seja, de crescimento. É preciso retomar o crescimento para que a história do Estado do Rio não seja uma prévia do que pode vir a acontecer com o Brasil. O Rio está sofrendo mais perda de receitas do que os demais por causa das crises do petróleo: a internacional, com queda na cotação do barril, e a doméstica, por causa do escândalo na Petrobras.
ÉPOCA – Como em toda crise, em algum momento os índices vão se recuperar, mas a vida das pessoas não pode esperar. Como crescer?
Afonso – Nosso desafio é baixar o custo de manutenção dessa estrada do crescimento para abrirmos novas estradas. A crise da Lava Jato pode ajudar a discutir as prioridades e o real custo das obras no Brasil. Por que aqui é mais caro do que lá fora? Precisamos baratear o investimento para ter mais dinheiro, descobrir por que mesmo gastando muito em Educação – estamos acima da média da América Latina – continuamos com índices muito fracos. E isso podemos tentar fazer agora estimulados pela crise. Temos uma das mais altas cargas tributárias do mundo e somos dos governos que menos investem. Nossa taxa de investimento público é das mais baixas. Somos campeões em gastar muito com consumo, pagar muito benefício social. Não vamos sair da crise com a Petrobras gastando menos. Não quero dizer com isso que a empresa deva continuar investindo de forma equivocada. A meta deve ser consertar e avançar.
ÉPOCA – Em meio a insegurança e perda de credibilidade, quais consertos poderiam estimular o resto da economia?
Afonso – A solução são mudanças estruturais para dar segurança e previsibilidade no longo prazo. Está mais do que na hora de se discutiremcritérios de seleção para dirigentes de empresas e bancos públicos no país. Outro ponto crucial são as agências reguladoras, que requerem não apenas uma direção profissional, mas precisam ter funcionários e orçamentos independentes. Eu começo a ficar otimista quando olho a história brasileira e percebo que, tirando o governo Lula em 2008 e 2009, todos responderam às crises com reformas estruturais. A privatização do Fernando Henrique foi resposta à crise. A própria presidente Dilma fez algo parecido ao lançar seu pacote de concessões no primeiro mandato. Se o governo levar uma proposta organizada para o Congresso, há chances de passar. Com mudanças estruturais, o governo pode dizer para o setor privado: "voltem a investir que estamos construindo a solução”.

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