domingo, 26 de setembro de 2010

A CONSPIRAÇÃO DA IMPRENSA João Ubaldo Ribeiro

A CONSPIRAÇÃO DA IMPRENSA João Ubaldo Ribeiro


O Estado de S.Paulo - 26/09/10

Acho que já contei aqui que, sempre que se fala em conspiração da

imprensa, recalques antigos despertam no meu coração de jornalista.

Meu primeiro emprego, aos 17 anos, foi em jornal e, de lá para cá,

nunca cheguei a me afastar muito da profissão. E é com sentimentos um

pouco ambivalentes que recordo jamais haver sido chamado para

conspiração nenhuma, em jornal ou revista alguma. Pior ainda, nunca

nem me deram a ousadia de me pôr a par da conspiração com que eu,

afinal, mesmo quando era o mais humilde dos focas, estaria

colaborando. Finjo que não ligo, mas vez por outra isso me dá um certo

baque na autoestima, creio que vocês compreendem.

Em relação a subornos, meu recorde talvez seja até mais humilhante.

Uma vez, quando eu era chefe de reportagem de um jornal de Salvador, o

promotor de um evento me mandou dois litros de King"s Archer

("Arqueiro do Rei"), uísque nacional do qual na época se dizia

desfechar uma letal flechada no fígado de quem o encarasse. Além

disso, sem que eu desconfiasse de nada, pegaram as garrafas na

portaria, beberam tudo e só me contaram meses depois, impondo-se a

embaraçosa conclusão de que fui subornado sem saber - ou seja, nem a

ser subornado direito eu acertei. E, quando eu era editor-chefe de

outro jornal, um prefeito do interior, que estava sendo denunciado por

escancarada corrupção, me ofereceu um velocípede para cada uma de

minhas filhas. Ao lembrar a maneira com que o repeli, manda a

honestidade reconhecer que minha indignação também se deveu ao valor

da oferta, o miserável podia pelo menos ter oferecido uma bicicleta.

No meu tempo de metido a comunista, escrevi para jornais controlados

pelo Partidão e nem nesses me inteiravam das conspirações. No máximo,

havia uma palavra de ordem ou outra, que a arraia-miúda repetia em

rodas de cerveja e para as quais ninguém parecia ligar muito. Nas

eleições presidenciais de 1960, quando votei pela primeira vez,

limitaram-se a me dizer que o partido apoiava o marechal Lott e nunca

me explicaram por quê. E, quanto ao famoso ouro de Moscou, no qual se

cevavam os comunistas, não só nunca vi sinal dele, como acredito que

os comunistas meus amigos tampouco - foram eles os que roubaram e

beberam os dois litros de King"s Archer.

Agora as suspeitas ou certezas de que há conspirações da imprensa em

andamento voltam a circular. Creio que, quando se sente em si a

encarnação do próprio povo, como parece estar acontecendo com o

presidente Lula, deve ser difícil suportar notícias e opiniões

discordantes ou mesmo apenas desagradáveis. Para ele, é bem possível

que a imprensa seja até ingrata, porque, se ainda está aí, é porque

ele quer, como, aliás, tudo está aí porque ele quer. A democracia e a

liberdade são fruto de sua tolerância, pois, afinal, está claro que

ele vê sua legitimidade como emanada diretamente do povo, sem a

intermediação de quaisquer outros mecanismos ou a necessidade de

instituições. E, nas horas de maior arroubo, talvez a virtude que ele

acredite mais praticar seja a da paciência. Ele sabe o que o povo

quer, o povo quer o que ele quer, que mais interessa? De fato, deve

ser enervante ficar suportando essas contrariedades, quando se podia

resolver tudo sem complicações supérfluas e inúteis. Haja paciência

mesmo, devemos ser gratos por tanta paciência.

Como estará a conspiração agora? Minha falta de experiência não ajuda,

mas fico imaginando salas hollywoodianas no alto de um arranha-céu na

Avenida Paulista, em que os conspiradores se juntam para sua atividade

golpista. Que estarão arquitetando esses grandes e facinorosos

bandidos? Não se sabe, mas certamente moverão uma guerra feroz contra

os bancos e os banqueiros. Afinal, nenhum setor ganhou ou ganha tanto

neste país quanto eles, tudo está a favor deles. E, segundo se diz,

eles demonstram sua gratidão através de contribuições generosíssimas

para a campanha eleitoral em que está empenhado o governo brasileiro.

As grandes empresas também andam faturando alto, o capitalismo está

feliz, mais feliz que em seus melhores sonhos. Tal situação certamente

incomoda a chamada grande imprensa, esse tradicional bastião

anticapitalista. Deve ser por isso que ela deve estar tramando o

golpe. E, claro, para que o golpe dê certo, precisam de um nome que

tenha aceitação popular, que seja aclamado e não rejeitado. Ou seja, o

próprio presidente Lula. Vocês vejam como essas coisas da política são

paradoxais. Assim de primeira, ninguém diria, mas conspiração é

conspiração, não vamos dar muito palpite no que não entendemos

direito.

A imprensa é de fato um problema. Quase ninguém se lembra, mas a

profissão de jornalista está entre as mais arriscadas e todo dia algum

é vítima de violência. A primeira ação das ditaduras, universalmente,

é a supressão da liberdade de opinião e o cerceamento de sua expressão

pela via legítima que é a imprensa. Subsiste a realidade de que, desde

que o mundo é mundo, a divergência desagrada aos poderosos, a crítica

os ofende e qualquer opinião que não coincide com as suas é uma

agressão. Um dos recentes pronunciamentos do presidente Lula sobre a

imprensa mostrava uma animosidade truculenta comparável à de seu

aliado Fernando Collor. A imprensa é vista como inimiga da nação,

praticamente a responsável por tudo o que de errado acontece entre

nós. Os mais velhos já viram tudo isso. Os jornalistas mais velhos já

viveram tudo isso. E tudo, afinal, passou, assim como também passará o

que estamos presenciando agora. As voltas que o mundo dá são tão

prodigiosas que o presidente Lula, já ex-presidente, logo tornará a

gostar da imprensa. E a precisar dela, como já precisou, pois que, no

sábio dizer de nossos maiores, dor de barriga não dá uma vez só.

2 comentários:

  1. O João Ubaldo me surpreendeu numa entrevista nas amarela da Veja já há uns 5 anos quando afirmou, categóricamente, que só escrevia por dinheiro. Cara sincero. Esse é corajoso.

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  2. aí está um texto primoroso,tendo seu viés politico mais sem demonstrar ódio ou animosidade ao presidente.que sirva de liçao a vc FAE que usa seus textos pra destilar ódio e inveja a Zé da luz que transformou caetés numa cidade valorizada e boa pra morar.

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