domingo, 20 de janeiro de 2019

Mario Vargas Llosa: "Meias verdades"


Como ex-presidente do PEN Internacional (entre 1977 e 1980) e atual presidente emérito dessa organização internacional de escritores, fundada na Inglaterra, no século passado, que participou de tantas batalhas pela liberdade de expressão e pelo direito de crítica em todo o mundo, tenho a declarar a minha tristeza e vergonha pelo texto 'Uma tendência preocupante: a liberdade de expressão sob o fogo na Catalunha', que acaba de ser lançado pelo PEN de Nova York em seu boletim informativo. 
Repleto de meias verdades – mentiras dissimuladas – o texto exagera e deforma o que acontece na Espanha, com o movimento de independência catalã, e dá a ideia de um país no qual a liberdade de pensamento é restringida, os direitos democráticos básicos são pisoteados, os cidadãos são impedidos de votar e juízes ultrapassados impedem cantores e cômicos de praticar travessuras e excessos tolerados em todas as sociedades abertas do restante do mundo.
Protestos na Catalunha
Ativistas bloquearam várias estradas na Catalunha, incluindo rodovias
importantes como a AP7 e a A2 Foto: Pau Barrena / AFP
Os autores do texto – Alyssa Edling e Thomas Melia – publicado pelo centro nova-iorquino, lembram que o PEN americano “não toma posição quanto ao tema da independência catalã” e logo em seguida endossam como seus todos os embustes que o PEN Center catalão (que ajudei a ressuscitar durante minha presidência) divulgou, como um órgão militante do movimento de independência, sem submetê-los à menor verificação, e, o que é pior, ocultando fatos básicos, de modo que uma entidade prestigiada com impecáveis credenciais democráticas aparece espalhando pelo mundo o que são, simplesmente, invenções e calúnias de propaganda política.
Quando afirma que o referendo de 1.º de outubro de 2017 foi interrompido por policiais que tomaram as urnas e dispersaram os eleitores “em ações brutais” exagera e muito: de onde saíram essas 893 pessoas feridas que se menciona, se apenas 2 pessoas feridas passaram pelo hospital? 
O mais grave é o que oculta: que o referendo em questão era absolutamente ilegal, proibido pela Constituição e pelas leis vigentes na Espanha, ou seja, um golpe de Estado. O governo da Espanha tem o direito e a obrigação de impedir tal ato de força, assim como os EUA o teriam se o Texas ou a Califórnia buscassem independência e violassem a União por meio de uma consulta local. 
Não foram as autoridades que “declararam” ilegal essa consulta. É a atual Constituição espanhola – aprovada com a imensa maioria dos votos dos catalães – que exclui a possibilidade de que uma província ou região da Espanha possa se tornar independente por meio de uma consulta local; todos os espanhóis devem se pronunciar, como é lógico, sobre a separação de uma unidade territorial formada há cinco séculos.
O texto sustenta que houve uma “inaceitável restrição à expressão pacífica e livre” dos catalães que foram impedidos de votar nessa ocasião. Como se, desde que a Constituição atual está em vigor (1978), não foram dezenas as ocasiões em que os catalães, em particular, e os espanhóis, em geral, votaram nas eleições locais, nacionais e europeias! Mais uma vez, a omissão maliciosa de que esse referendo foi delituoso permite apresentar a Espanha como uma sociedade na qual um governo autoritário priva seus cidadãos da mais básica garantia democrática.
O texto afirma que músicos e cômicos que foram processados (e muitas vezes isentados de culpa como aquele que limpou o nariz com uma bandeira da Espanha) por iniciativa de organizações da sociedade civil ou por promotores e juízes (tão independentes aqui quanto nos EUA) são indícios dessa “tendência preocupante” de privar os espanhóis da liberdade de se manifestar e de exercer críticas. Para alguém que vive na Espanha como eu, tal situação caricata tem pouco a ver com a realidade deste país, um dos mais livres do mundo, que em seu seio permite críticas e protestos extremos e até delirantes. 
Aqui, folhetos são lançados contra o rei e a monarquia e os líderes políticos são insultados sem escrúpulos, geralmente sob a vigilância implacável dos opositores e uma imprensa independente capaz de invadir a privacidade na medida em que se pode dizer que na Espanha o “privado” não existe mais. No domínio político, as razões e críticas são frequentemente confundidas com invectivas ferozes.
Os separatistas catalães têm na Espanha a liberdade mais absoluta para expressar suas ideias e convicções, e jornais, rádios e canais de televisão que os disseminam e defendem. O que eles não podem fazer é, em seu nome, transgredir a lei e cometer um golpe de Estado, que é o que eles tentaram em 1.º de outubro de 2017. Para este suposto delito serão julgados vários políticos catalães e foram detidos preventivamente para evitar o risco de uma fuga, semelhante à de alguns de seus cúmplices, que fugiram para buscar o amparo da Bélgica em uma região dominada por nacionalistas flamengos ultrarrevolucionários, que, naturalmente, se sentem solidários ao separatismo catalão.
Trabalhei muito quando era presidente da PEN International com o centro de Nova York, quando foi dirigido pela historiadora e ensaísta americana Frances Fitzgerald. Era um tempo de ditaduras abundantes em toda a América Latina e fizemos campanhas denunciando os crimes cometidos por militares argentinos, uruguaios, chilenos, brasileiros, etc., assim como contra a censura e pela liberdade de expressão no mundo. 
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Anti-separatistas pedem 'sensatez' na Catalunha
Como escritor e latino-americano conheço muito bem os abusos cometidos pelos regimes autoritários da esquerda ou da direita e tenho sido vítima de censura em muitos lugares. Por exemplo, aqui na Espanha, quando em tempos de Franco foi publicado o meu primeiro livro de histórias, tive que levar o manuscrito à censura, em uma casa anódina, sem qualquer placa, onde se entregava o texto a um sujeito anônimo e se passava, dias depois, para ir buscá-lo. O censor havia marcado com um lápis vermelho as frases e palavras – às vezes capítulos – que deveriam ser suprimidos ou corrigidos.
Daquela Espanha, felizmente, restou muito pouco. A transformação vivida por este país, graças à transição, surpreendeu o mundo, por serena e pacífica que foi. Com o colapso da ditadura de Franco, e incentivadas pelo rei Juan Carlos, todas as forças políticas, comunistas e conservadoras, concordaram em acabar para sempre com a guerra civil e coexistir em liberdade, em um regime democrático e sob uma Constituição, a mais livre que a Península Ibérica teve na sua história. Desde então, a Espanha goza de uma liberdade que não conhecia antes e muito poucas sociedades no mundo têm.
Faria muito melhor o PEN de Nova York em se preocupar com crimes contra escritores e jornalistas que são cometidos sob seus narizes em Venezuela, Cuba e Nicarágua – onde não só jornais, estações de rádio e televisão são fechados, mas onde se prende, tortura e mata opositores –, do que servir de caixa de ressonância para as mentiras dos separatistas catalães. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO 
 Prêmio Nobel de Literatura

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