- O Globo
Grupos formam uma oposição até bem-humorada. Mas quadro muda quando os mais radicais abusam das expressões fascista e comunista
Com a prisão de Lula, Palocci e, agora, José Dirceu, o PT sofre um duro
baque. Os dois outros grandes partidos, PSDB e MDB, agonizam mais
lentamente. Precisamente as escaramuças para driblar a Justiça e escapar
da Lava-Jato, diante de uma plateia atenta, vão levá-los à perda de
credibilidade.
Imaginam que ninguém percebeu que Gilmar Mendes soltou seus operadores.
Gilmar funciona como um juiz de futebol que apita uma inexistente falta
de ataque dentro da área. No futebol chamamos a isso de perigo de gol.
Em termos jurídicos, é perigo de delação premiada.
José Dirceu, o último a ser preso, concedeu uma entrevista muito sensata
e inteligente sobre a vida na cadeia, como sobreviver, como se
comportar. Ele acha que a esquerda voltará ao poder, porque é esse o fio
da história.
É perfeitamente possível que, num processo de alternância democrática, a
esquerda volte ao poder. No entanto, é difícil para os velhos
militantes abrirem mão desse fio da história, da crença de que ela tem
um rumo e desembocará no destino previsto.
Isto, por mais que seja revestido de um verniz científico, é na verdade
um contrabando religioso no pensamento político. Se a história tem um
script determinado, o papel dos atores também é facilmente explicável,
uns a favor outros contra o suposto rumo da história.
É um tipo de pensamento que facilita a divisão grosseira entre nós e
eles. Contribuiu a seu modo para o desgaste de nosso tecido político, do
avanço da intolerância.
Coxinhas e mortadelas, na verdade, formam uma oposição até bem-humorada.
Uma oposição entre carne branca e vermelha que talvez viaje no nosso
inconsciente antropofágico.
Hans Staden, um mercenário alemão que passou nove meses entre os
tupinambás, foi certamente o primeiro coxinha da história. Quase o
comeram. Escreveu um livro que arrebatou a Europa, um best-seller para a
época.
Nos dias atuais, a sublimação do desejo de devorarmos uns aos outros não
deixa de ser um avanço. No entanto, o quadro muda quando os setores
mais radicais no espectro usam e abusam das expressões fascista e
comunista.
Tanto o fascismo como o comunismo, cada um no seu estilo, deixaram
milhões de mortos, em regimes onde a liberdade também foi sepultada.
Quem é chamado de fascista ou comunista sente-se, no caso de não sê-lo,
bastante ofendido.
Mas isso não é o principal efeito colateral dessa leviana troca de
acusações. O fascismo é uma experiência histórica bem definida. O
primeiro efeito colateral negativo de acusações infundadas é banalizá-la
e, portanto, desativar sua rejeição e torná-la mais perigosa caso
apareça no horizonte.
O outro efeito colateral das acusações recíprocas é a falsa sensação de
que comunismo e fascismo são o verdadeiro antagonismo na sociedade
brasileira.
A ambos interessa que o antagonismo seja esse. No entanto, ele mascara
os diversos pontos em comum que os regimes comunistas e fascistas
partilham: repressão política, partido único e suas consequências.
E esconde o verdadeiro adversário do fascismo e do comunismo: a democracia, solução negociada dos nossos problemas.
A esquerda usou grande parte de sua energia para se defender, e deixou
de lado os problemas nacionais. É uma ausência que não só reduz suas
chances da alternância no poder: empobrece o debate sobre a reconstrução
nacional.
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