O Estado de São Paulo
A morte do ditador cubano Fidel Castro no dia 25 passado serviu como peculiar teste para as convicções democráticas daqueles que ainda se reivindicam de esquerda no Brasil. Algumas reações eram óbvias. O Partido dos Trabalhadores, que reiteradamente pronuncia-se em favor do descalabro econômico e humanitário por que passa a Venezuela chavista, naturalmente afirmou em nota oficial que o “comandante” foi líder de revolução por “justiça social”; o ex-presidente Lula da Silva pranteou o ditador classificando-o como o “maior de todos os latino-americanos”; o Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL), que até delegações mandou para apoiar o chavista Nicolás Maduro na fraudulenta eleição venezuelana de 2014, referiu-se ao homem diretamente responsável pela morte de dezenas de milhares de opositores políticos como “defensor da paz mundial” e “exemplo” para todas as gerações. Tais declarações são óbvias porque, como disse, já o histórico desses partidos e de suas lideranças atestam as simpatias retrógradas pelo castrismo e por variedades mais contemporâneas de autoritarismo latino-americano.
Menos óbvia, no entanto, foi a reação de lideranças políticas e intelectuais das quais se esperava uma atitude mais sóbria e digna à esquerda. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso divulgou nota em que trata o ditador por “homem gentil” e “bom interlocutor”, reservando mais críticas a um futuro governo Donald Trump, sobre o qual nada se sabe ainda, do que aos milhares de mortos que o castrismo objetivamente deixou (timidamente mencionou que Fidel “não teve sucesso para assegurar a tolerância política e as liberdades democráticas”). Em uma rede social, o professor de teoria política da Unesp e colunista deste Estado de São Paulo, Marco Aurélio Nogueira, afirmou que ser um ditador “não é o aspecto mais relevante da biografia dele [Fidel]” e que é preciso “dar valor (…) ao lado sapiens e ao lado demens” das pessoas, pois, do contrário, não conseguiremos fazer da democracia um “valor universal”. O professor da Fundação Getúlio Vargas e ex-ministro nos governos Sarney e FHC, Luiz Carlos Bresser-Pereira, após alguns anos defendendo incansavelmente Hugo Chávez e Nicolás Maduro como verdadeiros exemplos da vontade popular e da verdadeira democracia, enalteceu Fidel Castro e guardou suas ressalvas para o fato de que Cuba traiu o socialismo, que nunca chegou a ser implementado na ilha (nem em parte alguma), sendo apenas um “estado igualitarista”, mas felizmente não se rendeu à traição imperdoável de ser um sistema capitalista. O ex-governador do Distrito Federal e ex-Ministro da Educação pelo PT , Cristóvam Buarque, hoje senador da República pelo Partido Popular Socialista (PPS), tratou Fidel Castro por “herói”, sem qualquer menção ao terror escandaloso implementado por seu regime na ilha caribenha. Outro ex-Ministro da Educação petista, o professor de Ética da Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro, saiu-se dramaticamente pior, alegando que “Fidel reprimiu e matou, é verdade”, mas o fez por culpa dos Estados Unidos. Mais: repetindo um chavão indecente dos apoiadores de ditaduras, afirmou que sem o castrismo e seus assassinatos, “Cuba seria o que hoje é o Haiti”. Aqui, não posso não acusar um tipo de deformidade ideológica que compromete até mesmo o caráter do indivíduo capaz desse raciocínio.
Mesmo descontando todas as questões geracionais que poderiam ser invocadas para matizar essas declarações, que vão de infelizes a francamente imorais, é impossível deixar de constatar que não houve uma única voz da chamada “esquerda democrática” que tenha expressado sem tergiversar a recusa firme e inequívoca do legado de Castro: um estado de terror persecutório que silenciou, prendeu, torturou e matou milhares de cidadãos cubanos culpados do terrível crime de pensar diferente do autocrata brutal que foi Fidel. O que devemos pensar, nós que nos importamos com uma democracia vibrante, plural, com variadas perspectivas políticas, em face desse silêncio? Não faz muito, em excelente ensaio publicado no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo (“É hora de rediscutir programas e ideias na esquerda brasileira”, 13/11/2016), o cientista político Celso Rocha de Barros escreveu que a esquerda precisa abandonar três figuras “patológicas” (no que seguia a lição de Ruy Fausto). Uma delas era justamente o apego ao totalitarismo. Por que razão, se perguntava Barros, seria preciso que os militantes de partidos de esquerda gastassem sua energia para defender regimes totalitários como o stalinismo, o maoísmo e o castrismo? Barros pensava sobretudo no PCdoB, mas estendia sua análise ao PT e ao PSOL:
“Por que não se concentrar na defesa de objetivos razoáveis de redistribuição de renda no quadro da sociedade brasileira (em defesa dos quais, aliás, o PCdoB tem história)? Esse raciocínio se aplica também às defesas que PT ou PSOL fazem do regime cubano.”
O autor concluía sua análise desse problema assumindo certo “cansaço” por ainda ser necessário tratar desses temas no Brasil.
Não vou entrar em questões muito específicas aqui, pois outros artigos no nosso Estado da Arte tratarão delas. É o caso da análise equivocada segundo a qual sem a ditadura castrista, não teria havido avanços sociais em Cuba, como alega espantosamente o professor Janine Ribeiro, endossando o assassinato político em nome de suas preferências estatísticas (que, além de tudo, ainda são falsas). Também não quero tratar do estapafúrdio argumento do professor Marco Aurélio Nogueira, segundo o qual, se não soubermos valorizar o lado bom dos ditadores que perseguem, prendem, torturam e matam, nunca valorizaremos a democracia liberal – de fato, coloquemos esse pequeno delírio na conta das bobagens que, volta e meia, nos escapam nas redes sociais. Vale a pena, no entanto, chamar atenção para a ótima contribuição de Celso de Barros para este debate atual, e questionar, novamente: onde estavam as vozes desta esquerda reinventada e não totalitária, agora que uma clara recusa dos caminhos violentos do castrismo se fazia atual, justificada e necessária? E mais: é possível esperar de uma esquerda de matriz intelectual marxista que seja verdadeiramente comprometida com a democracia, com os direitos humanos e com as liberdades individuais? Deixo o leitor com a excelente síntese oferecida por um dos mais brilhantes historiadores do século XX, o britânico Tony Judt. Social-democrata apaixonado e brilhante, Judt foi, a vida toda, um homem da esquerda liberal anticomunista. Nunca julgou que suas posições socialmente progressistas dependessem do passado sanguinolento das tradições de regimes autoritários de esquerda. E quando escreveu sobre as memórias do também historiador britânico Eric Hobsbawn, não hesitou em deixar patente sua repulsa pelas simpatias stalinistas e totalitárias que Hobsbawn manteve até o fim de seus dias. Suas palavras não poderiam ser mais verdadeiras hoje:
Se a esquerda espera recobrar aquela autoconfiança e reerguer-se, devemos parar de contar histórias reconfortantes sobre o passado. Pace Hobsbawn, que calmamente o nega, houve uma “afinidade fundamental” entre os extremos da esquerda e da direita no século XX, auto-evidente para qualquer um que os tenha experimentado. Milhões de progressistas ocidentais bem-intencionados venderam suas almas para um déspota oriental (…). Os valores e as instituições que se tornaram centrais para a esquerda – da igualdade perante à lei à provisão de serviços públicos como um direito de fato – e que hoje encontram-se sob ataque – não devem nada ao comunismo. Setenta anos de “socialismo realmente existente” não contribuíram em nada para o bem-estar da humanidade. Nada.
Onde está a esquerda democrática brasileira? Onde estão os que aprenderam as lições de Tony Judt?
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