segunda-feira, 4 de maio de 2015

"País imprevisível", por Mário Vargas Llosa O Estado de São Paulo




Há algumas semanas estive nos Estados Unidos participando de uma conferência sobre economia dedicada à América Latina, organizada pelo Citibank. Cerca de 300 empresários, banqueiros e analistas passaram em revista durante alguns dias a situação da região. Não exagero ao afirmar que a impressão geral dos participantes sobre a situação do Peru não podia ser mais positiva.
Sem exceção, reconheceram que, após a queda da ditadura de Fujimori em 2000, a democracia se estabeleceu e, durante os governos de Valentín Paniagua, Alan García, Alejandro Toledo e hoje Ollanta Humala, as instituições passaram a funcionar sem maiores obstáculos, a economia cresceu acima da média latino-americana, a redução da pobreza extrema foi notável, assim como o crescimento da classe média. E, diante da sua estabilidade institucional e abertura econômica, o Peru é um dos países mais atraentes para o investimento estrangeiro. Esta não foi a única ocasião em que ouvi avaliações similares. A verdade é que nunca, desde que me lembro, a imagem de meu país é tão positiva no restante do mundo.
Mas, quem vive no Peru, onde acabo de passar uma temporada, pode ter uma impressão muito diferente: a de um país exasperado, à beira da catástrofe diante da ferocidade fratricida das lutas políticas, e a que as greves contra as mineradoras, especialmente em Cajamarca e Arequipa, a corrupção que se alastra furiosamente nas regiões por culpa das máfias locais e do narcotráfico, e a agitação social, estão provocando um retrocesso e levando o país de novo perto do abismo, ou seja, à barbárie do subdesenvolvimento e também do colapso constitucional.
Como explicar esta incongruência entre as imagens externa e interna do Peru? Pela falta de perspectiva, a concentração fanática nos ramos, ocultando a visão da floresta. Este é provavelmente o principal erro da imprensa peruana - escrita, radiofônica e televisiva - controlada em cerca de 80% por um único grupo econômico que, como a sua imensa maioria, faz oposição ao governo, difunde uma visão apocalíptica de uma problemática social e política que, no cômputo final, é muito menos grave do que na maioria dos países do continente. E, ao mesmo tempo, esquece e procura mesmo destruir a maior conquista do Peru em toda a sua história: um amplo consenso nacional em favor da democracia e da economia de mercado. Sem este acordo nacional, do qual, salvo no caso de pequenos grupos insignificantes, participam tanto a direita como a esquerda, o Peru jamais teria avançado tanto quanto nos últimos 15 anos.
No final de março a situação se agravou de tal maneira que alguma catástrofe poderia ocorrer. O Parlamento votou uma moção de censura contra a primeira-ministra Ana Jara durante uma sessão que acompanhei em parte pela TV, aturdido com o nível de ignorância e demagogia de alguns dos legisladores. O presidente Humala nomeou em 2 de abril um novo gabinete presidido por Pedro Cateriano, que tinha sido, durante dois anos e oito meses, seu antigo ministro da Defesa. Quase considerou esta nomeação uma provocação do presidente visando uma nova moção de censura que lhe permitiria constitucionalmente fechar o Congresso e convocar novas eleições parlamentares. Cateriano foi, ao longo de toda sua gestão ministerial, um crítico implacável do fujimorismo (os que seguem a doutrina de Fujimori) e daqueles que defendem as teses da Apra (Aliança Popular Revolucionária Americana), as duas forças mais hostis ao governo e cujos dirigentes, Keiko Fujimori e Alan García, certamente serão candidatos nas eleições presidenciais de 2016.
Mas nada ocorreu como ele previa. Em vez de se mostrar o agressivo provocador que se esperava, Pedro Cateriano desde o primeiro momento expressou uma surpreendente vontade de coexistência e diálogo. "Terei de mudar. Como presidente do Conselho de Ministros, minhas opiniões políticas pessoais em muitos casos terão de ser substituídas pelo critério do governo", explicou.
Contatou todos os líderes políticos, principalmente os da oposição, explicou seus planos, ouviu suas críticas e até se deixou fotografar cumprimentando seus arquirrivais Keiko Fujimori e Alan García. O resultado é que, depois de dez horas de debate, o novo gabinete presidido por Cateriano foi aprovado por 73 congressistas, com 10 votos contrários e 39 abstenções. O mais notável é que uma insólita paz e um inaudito clima de convivência se instalou imediatamente num país que havia pouco parecia prestes a um golpe de Estado ou uma guerra civil.
Em boa hora, claro, e esperamos que essa civilizada trégua perdure e o governo possa governar em paz no seu último ano. E também que haja uma campanha eleitoral e eleições livres e autênticas que consolidem este processo que se desenvolve há 15 anos e trouxe um progresso sem precedentes na nossa história.
Temos de cumprimentar o presidente Humala por sua aposta audaz, nomeando Cateriano como novo primeiro-ministro, apesar de sua reputação de briguento e impetuoso. O presidente conseguiu ver, por baixo da aparência de provocador, um político fora de série no cenário peruano. Eu o conheço bem e há muitos anos.
Mas é completamente falso, como foi alardeado, que eu teria interferido nas nomeações. Jamais pedi - nem pedirei - algum favor ao presidente Humala. Apesar do apoio que lhe prestei, também o critiquei quando achei justo. (Por exemplo, por não ter apoiado publicamente a oposição democrática venezuelana que resiste heroicamente às garras ditatoriais do inefável e desprezível Maduro). E tampouco pedirei ao novo premiê, exatamente porque se trata de um velho amigo.
A primeira vez que o vi, durante a campanha eleitoral em que fui candidato, Cateriano discursava no vazio, na praça de Tacna, onde havíamos convocado um comício que foi acompanhado por quatro gatos pingados. Mas ele discursava com uma convicção extraordinária sem se importar com o ridículo. Expressava ideias em vez de lugares comuns ou impropérios, e é um homem culto e decente, extremamente honrado. Não só incapaz de se envolver em tráficos de influência ou acordos descarados, tão frequentes entre os homens de poder, e também incapaz de tolerá-los à sua volta. Não tenho a mínima dúvida de que, com ele à frente do Conselho de Ministros, a luta contra a corrupção, uma das pragas que assola toda a América Latina, adquirirá novo ímpeto.
Ao longo de quase toda minha vida tenho sido muito pessimista quanto ao futuro do Peru. Talvez tenha contribuído para isso o fato de ter passado minha infância e juventude num país afetado por uma ditadura militar, a de Odría, que prostituiu todas as instituições, entre elas a universidade onde estudei, e mais tarde ter visto como foram frustradas todas as tentativas democráticas, destruídas por partidos políticos incapazes que preferiam se arrasar mutuamente a fazer avançar a democracia, mesmo que acarretasse ocasionalmente o retorno da ditadura.
Desde 2000, com a queda de Fujimori e Montesinos, ladrões e assassinos que bateram todos os recordes de criminalidade estabelecidos pelos ditadores peruanos, repentinamente começaram a ocorrer coisas em meu país que me deram esperança. Há três mandatos, com alguns tropeços e interrupções, ela tem se mantido. E hoje continua viva. Mas, como uma vela, está sempre em sobressalto temendo ser apagada por uma rajada de vento. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
É ESCRITOR PERUANO E PRÊMIO NOBEL

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