terça-feira, 10 de junho de 2014

Nelson Rodrigues ao telefone - ARNALDO JABOR

Nelson Rodrigues ao telefone - ARNALDO JABOR

O GLOBO - 10/06

Ele me dá bons conselhos lá do céu de papelão


Quando fico angustiado com as notícias brasileiras, ligo para o Nelson Rodrigues. Ele me dá bons conselhos lá do céu de papelão, entre nuvens de algodão e estrelas de papel prateado — seu paraíso é um cenário de teatro de revistas. O telefone toca como uma trombeta suave.

Ele já sabe quem é:

— Você, hein? Só me liga quando está encalacrado.

— Estou mesmo, Nelson, mas não sei se sou eu ou o Brasil.

— Deixa de frases, rapaz, você e o Brasil são a mesma coisa. O Brasil não é feito de florestas e cachoeiras. O Brasil é uma região dentro de nossas cabeças. Você é o Brasil. Levaram séculos para aperfeiçoar nosso atraso e você me vem com essa. Subdesenvolvimento não se improvisa. É uma obra de séculos.

— Ninguém entende mais nada... Eu nunca vi o Brasil assim...

— Eu sempre vi assim. O Brasil não mudou nada. O problema é que você quer “entender” e o país é muito maior que seu entendimento. Não mudou nada; só está vindo a furo, como um bom furúnculo. Você está nervoso porque sempre achou que havia salvação. Não existe isso. Nunca vamos chegar a lugar nenhum, porque não há ponto final... a não ser aqui em cima, claro. O que muda mesmo não são os fatos, como querem os idiotas da objetividade. O que nos muda não são as famosas “relações de produção” não; são bobagens nas brechas dos fatos. Quais foram as grande mudanças do país, nos últimos 50 anos? Getúlio se matou, o Jânio tomou um porre e se foi, o Tancredo morreu de nó na tripa, o Collor caiu porque não respeitava nem as cunhadas (como o meu Palhares), o Lula foi eleito por um publicitário, como uma boa margarina. É isso. O Brasil não é épico; nunca tivemos um Stalingrado, um Waterloo... Nem a Batalha de Itararé.

— Mas por que esta estagnação, esta zona geral?

— O Brasil não vai para a frente com planos messiânicos ou “epopeias de Cecil B. de Mille”, sejam elas epopeias “socialistas” ou liberais. O “óbvio ululante” é que os brasileiros odeiam justamente o óbvio. Bastava fazer umas reformas, não jogar dinheiro fora, amarrar os corruptos no pé da mesa, diminuir impostos, chupar a carótida dos chefes das Estatais como tangerinas. Mas, não; só querem apoteoses ou dilúvios de quinto ato do “Rigolleto”.

— Mas o cinismo dos políticos está cada vez maior!

— Não veja os políticos como gênios do bem ou do mal, Stalins ou Josés Bonifácios. São apenas uns sujeitinhos de cabelo pintado de preto ou acaju. Uns fingem de socialistas, outros de conservadores. Mas todos querem é o poder, as mãos dentro das cumbucas do Estado. Esses que estão aí querem criar “sovietes”, grupos corporativos como na Rússia. Já pensaram em Dirceu e Genoino dirigindo o país? Na época da ditadura ainda dava. Todos nós babávamos na gravata, imbecilizados, sem informação. O que nos salva é que eles são muito ignorantes. Antigamente, os cretinos se escondiam pelos cantos, babando pelos inteligentes de carteirinha. Agora estão aí, achando que vão mudar o país. Para eles, o capitalismo ainda é tratado como uma pessoa. “Hoje o capitalismo acordou de mau humor” ou “o capitalismo é muito egoísta, só pensa em lucro.” Nunca ninguém leu nada. Eu os chamava de marxistas de galinheiro. Eles me odiavam. Eu era chamado de pornográfico e depois virei o reacionário fundamental. Mas perdem sempre, pois a burrice é uma força da natureza. A burrice é a Pedra da Gávea.

— Querem controlar a imprensa...

— Querem controlar os brasileiros, fazê-los obedientes... Mas esquecem que os brasileiros têm a alma de feriado. Somos incontroláveis. Tem um Brasil sob as calçadas, nas sarjetas, nos bueiros que renasce e reage. E o pior dessa turma é que eles têm certezas profundas e isso os destruirá em breve. A dúvida sempre me pareceu mais sábia, mais clarividente.

— Deus queira.

— Eu nunca vejo Deus por aqui. Parece que anda deprimido por ter inventado o “livre arbítrio” dos homens, que está gerando essa esculhambação aí embaixo. Mas, se Deus me perguntasse o que eu fiz de bom na vida, eu responderia: “Senhor, eu descobri o óbvio!”. Sempre vi o que ia acontecer. Essa gente é muito óbvia. Você veja o Zé Dirceu, por exemplo, bom rapaz, era o Marlon Brando das comunistas, mas ele só amava os postes. Via um poste, subia nele e começava a falar da Utopia. Os passantes ouviam e perguntavam: “Quem é essa tal de d. Utopia? É mulher dele?”. A Dilma, coitada, é uma boa senhora que amava o Brizola, amava o Lula. Ela queria ser uma dona de casa, uma mãe de família “revolucionária”. Foi corajosa na juventude e hoje está aí... É uma Dilma que não existe, é um clone de si mesma. Mas estou te achando muito pessimista, rapaz...

— Nada. Sou um otimista bem informado...

— Não faz frase, rapaz... Não adianta se atolar em euforias brutais nem viver com complexo de vira-latas. Um retrato bom do país é o PMDB, feliz em sua mediocridade. O Brasil é o PMDB. O Brasil não é épico; é coloquial.

— E a Copa?

— Talvez ganhemos porque estamos com medo até das manifestações. Sem medo não há vitórias. Em 1950, perdemos porque estávamos mascarados.... Máscara é fogo... rapaz...

— Mas está morrendo mais gente aqui do que na Síria, Nelson...

— Vocês achavam que iam escapar? Ninguém escapa. O Brasil se achava uma ilha protegida, mas o mundo invade tudo. O Oriente, a África, o mundo quase em guerra e o Brasil numa boa? Impossível. Não há piedade na História... O Hegel e o Nietzsche vivem brigando aqui dentro. Ontem o Nietzsche disse isso: “A História não tem hora; é intempestiva! Cai feito um raio!”. O Hegel não gostou nada e anda deprimido pelos cantos. Agora a história do mundo atual está nos contaminando. Mas isso é bom. Sabe por quê? Porque teremos de assumir nossa miséria, assumir a nossa lepra, que o mundo agora vai ver. Não sabemos o que fazer com o Brasil, mas ao menos estamos conhecendo nossa cara...

— É isso aí, Nelson.

— Não se preocupe. Daqui a alguns anos, vão lembrar desta época como um “fascismo de galinheiro” disfarçado de “marxismo de galinheiro”. Fascismo é a burrice no poder, rapaz...

E desligou.

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