quinta-feira, 3 de abril de 2014

LEIAM, ESPECIAL DA VEJA SOBRE O GOLPE MILITAR

03/04/2014
 às 7:58 \ O País quer Saber

Especial VEJA: Ernesto Geisel, do limbo ao Planalto

Publicado na edição impressa de VEJA
geisel
“Era uma espécie de cão leproso.” Assim o general Ernesto Geisel classificou a situação em que estava quando João Goulart tomou posse, no apressado arranjo parlamentarista, em 1961. Não teve cargo, comando nem prestígio junto ao novo chefe de governo, a quem considerava “um homem fraco e dominado pelas esquerdas”. Três anos depois, era um dos integrantes mais importantes do grupo chefiado pelo general Humberto Castello Branco.
A aproximação entre os dois futuros presidentes militares não tinha sido exatamente fácil. Conspirador de primeira hora, Geisel, tão austero que quando cursava a Escola Militar do Realengo não aceitava convites de fim de semana de colegas cariocas porque não tinha roupas que considerasse apresentáveis, fazia restrições ao cearense que gostava de poesia e seguia a linha legalista. “Muitos de nós não gostávamos do Castello na vida militar, inclusive eu e meu irmão Orlando, por causa do seu feitio, por ser irônico”, relatou muitos anos depois, na série de entrevistas transformada em livro por Maria Celina D’Araujo e Celso Castro.
Ao se afastar de “generais amigos, contrários a nós e ligados ao sistema Jango”, Castello se aproximou de Geisel e Golbery do Couto e Silva, que estava na reserva e, como sempre, transitava no fluido mundo das sombras. O general de cintura dura também teve seus momentos de maquiavelismo, já nos estertores do governo Goulart, quando o presidente apoiou em pessoa os sargentos praticamente em estado de sublevação. “Alguns companheiros vieram a mim com a proposta de cercar o acesso ao Automóvel Clube com elementos de confiança e assim impedir a realização da reunião. Fui contrário a isso, dizendo: ‘Deixem que se faça a reunião; agora, quanto pior, melhor para a nossa causa’.”
Geisel e Golbery acompanharam Castello em suas movimentações de 31 de março e 1º de abril, no quartel-general do Exército e entre apartamentos cedidos por simpatizantes que passaram a ser chamados de postos de comando. Ironizada como a “revolução por telefone”, a articulação na verdade foi essencial para aglutinar os diferentes focos de rebelião militar. “Não havia um comando único na revolução. Mas, para o nosso grupo, o chefe era o Castello”, descreveu Geisel.
O outro grupo se inclinava pelo general Arthur da Costa e Silva. Falando com palavras cuidadosamente inteiras, como era de seu feitio, ele resumiu assim a disputa em gestação: “Essa divergência, no meu modo de ver, teve influência muito grande depois”. Mas, nos idos de março de 1964, Castello era o nome mais forte e Ernesto Geisel um de seus homens de total confiança. Passados dez anos, tornou-se presidente com um voto só que realmente contava ─ o de seu antecessor, Emílio Garrastazu Médici ─ e um projeto “lento, gradual e seguro” de retorno à democracia. Demorou mais dez anos. Sua seca e final avaliação: “Foi um erro ter-se ficado tanto tempo”.
Colaboradores: André Petry, Augusto Nunes, Carlos Graieb, Diogo Schelp, Duda Teixeira, Eurípedes Alcântara, Fábio Altman, Giuliano Guandalini, Jerônimo Teixeira, Juliana Linhares, Leslie Lestão, Otávio Cabral, Pedro Dias, Rinaldo Gama, Thaís Oyama e Vilma Gryzinski.
02/04/2014
 às 8:09 \ O País quer Saber

Especial VEJA: Castello Branco ─ A vitória sorriu afinal para o ‘Coronel Y’

Publicado na edição impressa de VEJA
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Depois da parada do carro oficial para uma subida rápida ao apartamento 304 da Rua Jangadeiros, 23, em Ipanema, na tarde de 31 de março, Castello Branco só teria um superior hierárquico, o “Coronel Y”. Castello tinha 63 anos. Ou 66, se verdadeira a plausível história de que o pai, o general Cândido Castello Branco, roubou três anos para garantir a gratuidade do filho no colégio militar. Castello vinha de horas tensas passadas no seu gabinete de chefe do Estado-Maior no quartel-general do Exército, quando, com uma ordem de prisão contra ele sendo protelada por colegas de farda simpatizantes, expediu este telegrama a todos os comandantes de tropa: “Restaurar legalidade. Restabelecer a Federação. Eliminar o desenvolvimento do plano comunista de posse do poder. Defender as instituições militares, que começam a ser destruídas. Estabelecer a ordem para o advento de reformas legais”. O regime de Jango estava liquidado e, apesar de o eterno rival, o general Arthur da Costa e Silva, ter se autodenominado Comandante Supremo da Revolução, Castello Branco era o líder inconteste aos olhos da tropa e dos chefes civis do movimento.
Em casa, antes de seguir para um dos muitos locais secretos preparados para aquele momento, ele tirou pela última vez a farda de general de quatro estrelas e colocou um terno. Obedecia às ordens do Coronel Y. Com esse codinome, ele assinou dez colunas em um jornal carioca nos anos 1930. Nelas traçou a visão do papel do militar da qual não se afastaria nunca mais. Se o menino é o pai do homem, o Coronel Y foi o pai doutrinário de Castello: “O militar-político é um lobisomem, um homem de existência dupla e misteriosa e que mete medo. Passando a desempenhar função civil, é militarmente lógico e individualmente honesto que ele se torne um egresso de sua classe”.
Castello se tornara um egresso de sua classe. Nessa condição foi eleito presidente da República pelo Congresso, prendeu, cassou, mas não permitiu a tortura. Fez uma reforma agrária, criou o Banco Central e o FGTS. Quis devolver o poder aos civis. A linha dura não permitiu. Assinou o Ato Institucional Nº 2 e acrescentou de próprio punho um parágrafo único: “O atual presidente é inelegível”. Morreu em 1967 no céu do seu Ceará em um acidente insólito. O avião em que viajava foi abalroado em pleno ar por um caça da FAB. O piloto militar sobreviveu.
Humberto de Alencar Castello Branco foi o primeiro presidente do ciclo dos generais, que seria fechado 21 anos mais tarde pelo general João Figueiredo. Castello foi também um dos últimos oficiais superiores da estirpe de numes tutelares nascida com a Proclamação da República, em 1889, pela espada do marechal Manoel Deodoro da Fonseca. Cresceu ouvindo do pai general: “Nós militares parimos a república, é nosso dever embalá-la”. Era um tempo em que as famílias cuidavam de ter filho padre e militar. Não para salvar almas ou ganhar guerras. Mas para angariar poder político. Foi para isso que o pai o encaminhou para a farda. Foi por isso que ele a tirou em 31 de março.
Uma contradição em termos, Castello foi o grande legalista, mas deu o golpe. Sendo um empedernido soldado profissional, fez política de tenente a general. Sem chance de competir pelos primeiros lugares com os cadetes teutônicos, louros, altos, atléticos, e os de inteligência natural transbordante, como Luiz Carlos Prestes e Henrique Teixeira Lott ou mesmo Costa e Silva, decidiu superá-los pelo esforço sobre-humano nos estudos e na adesão fundamentalista à disciplina. Sua bússola era o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE). “Mas, enquanto os outros militares só faziam o que o RDE permitia, o Castello fazia tudo o que o RDE não proibia. Assim ele conseguiu estar sempre à frente e ter o controle da maioria das situações conflituosas em que se metia”, lembra um de seus recrutas. Isso o ajudou a superar oficiais mais graduados na campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália durante a II Guerra Mundial e a aderir à conspiração a curta distância do quepe de Jair Dantas Ribeiro, ministro da Guerra e fiel a Jango, ao tempo que dava ao superior seguidas provas de apego à hierarquia e à disciplina.
Ribeiro não tinha razões para duvidar de Castello, que sempre rejeitou, um a um, todos os convites anteriores para tomar parte de golpes, quarteladas, motins e revoluções. Tantas vezes colegas esperançosos de que aderisse de última hora não lhe confiaram as senhas desencadeadoras de movimentos como “o bebê nasceu” ou o “trem partiu da estação”. Ele se manteve sempre legalista, racional, disciplinado e obediente à hierarquia, guardião da Constituição ─ democrata, enfim. Colocando em segundo plano as fraternas lealdades da caserna, colecionou antipatias duradouras. Castello combateu a Coluna Prestes nos anos 20. Foi contra a Revolução de 1930. Sem a menor admiração por Getúlio Vargas, foi legalista em 1932. Ficou contra os oficiais que queriam impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek, em 1955, por ele ter como vice João Goulart. No levante de Aragarças, de 1959, quando oficiais da Aeronáutica se amotinaram contra Juscelino, sua conduta foi exemplar. Emissários enviados para sondar a possibilidade de obter apoio do então comandante militar da Amazônia ouviram a negativa que ecoava a doutrina do Coronel Y: “É um erro de visão acreditar que o Brasil não pode melhorar dentro do regime constitucional. Só se faz uma revolução dentro de uma ideologia e impelido por uma forte corrente de opinião pública. O Brasil não quer quarteladas”.
Por que em 1964 sua atitude foi diferente? Por que ele resolveu fazer o “creme de abacate”? Essa era a expressão que os oficiais do Exército usavam para ilustrar o fato de que, embora até reconhecessem o papel da Força Aérea e da Marinha, qualquer ação contra o governo Goulart só teria êxito com o predomínio das fardas verdes. Castello aderiu por duas razões. A mais simples e prática decorria do fato de que a vitória era certa. No pior cenário, na avaliação lógica do estrategista da tomada do Monte Castelo na campanha da Itália, a vitória viria em no máximo dois meses. Veio em um dia. A outra se assentava na constatação de que o movimento contra Goulart não era uma quartelada. Não era a pura e simples usurpação do poder. O movimento representava o desejo legítimo de ampla parcela do povo.
A maioria dos generais do Exército selou o destino de Jango depois do comício na Central, no dia 13 de março, quando Leonel Brizola propôs fechar o Congresso e convocar um plebiscito. Castello precisou de mais uma semana para aceitar a inevitabilidade da ação. No dia 20 ele se comprometeu até a medula com o movimento ao emitir uma decisiva nota circular aos oficiais comandantes do Exército: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”. Usar o Exército como milícia era o plano mestre do núcleo duro em torno de Jango. “Ele nunca elogiou ninguém”, reclamava o general Olympio Mourão Filho, cujas tropas Castello tentou, em vão, fazer voltar aos quartéis em telefonema ao governador mineiro, Magalhães Pinto. Mourão encarnava tudo o que Castello desprezava em um comandante: “Fuja dos generais intuitivos e emocionais. A hecatombe nunca anda longe deles”.
Castello não viu seu triunfo degenerar nos males que julgou vencidos em 1964. Morreu como viveu: respeitado, admirado e temido. Talvez tenha superado as marcas traumáticas da cifose, seu tormento da juventude, que o levaria a usar um corretor postural na última década da vida. Talvez tenha apagado o trauma do telegrama do pai ─ “faça exame” ─, recebido quando era primeiro-tenente no 12º Regimento de Infantaria, em Belo Horizonte. Fazer um exame médico fora a única exigência imposta pelo sogro, o comerciante Arthur Vianna, para entregar-lhe a mão de sua filha Argentina. Vianna temia que Castello fosse portador de uma doença hereditária. O amor foi maior do que a indignação, e o tenente deixou-se examinar, tranquilizando o sogro. Poucos meses depois, casou-se com Argentina, que morreu, em 1963, no Recife. Dois anos mais tarde, dizem, o coração de Castello já encontrava conforto ocasional ao lado de linda e talentosa atriz.
Colaboradores: André Petry, Augusto Nunes, Carlos Graieb, Diogo Schelp, Duda Teixeira, Eurípedes Alcântara, Fábio Altman, Giuliano Guandalini, Jerônimo Teixeira, Juliana Linhares, Leslie Lestão, Otávio Cabral, Pedro Dias, Rinaldo Gama, Thaís Oyama e Vilma Gryzinski.
01/04/2014
 às 8:32 \ O País quer Saber

Especial VEJA: João Goulart, um coadjuvante no papel de protagonista

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AUGUSTO NUNES
Refestelado num sofá no 3º andar do Palácio do Planalto, tomado pelo bando de gaúchos felizes com o resultado do plebiscito que havia encerrado a curta experiência parlamentarista, o capataz da estância de João Goulart em São Borja resumiu a dúvida que o afligia. “Janguinho, aqui estamos no gabinete do presidente”, constatou Bijuja. “Só não sei se nós subimos ou se é a República que está descendo…” Mais de cinquenta anos depois, o empresário Ronald Levinsohn, testemunha da cena, continua achando que Jango deveria ter levado a sério a pilhéria de Bijuja. João Belchior Marques Goulart fora um razoável deputado federal, um competente chefe do PTB e, entre janeiro de 1956 e agosto de 1961, o vice invisível que todo governante pede a Deus. Mas as trapalhadas do ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e os equívocos do presidente ofuscado pela existência de um primeiro-ministro avisavam que talvez não estivesse pronto para o papel principal. Seu desempenho na chefia do governo, sobretudo nas 48 horas finais, provou que o aplicado coadjuvante não havia nascido para protagonista.
“Era difícil não gostar de alguém tão simpático, amável, incapaz de odiar os piores inimigos”, disse em 1980 o general Argemiro de Assis Brasil. “Mas a verdade é que Jango só sabia governar uma estância, que é algo muito diferente de um país de dimensões continentais atormentado por crises desde 1922.” O desapreço pela rotina administrativa foi igualmente testemunhado por Ronald Levinsohn. “Uma vez ele me chamou a Brasília para ajudá-lo a livrar-se de alguns documentos que precisava assinar”, lembra o empresário. Confrontado com a montanha de papel, sugeriu que embarcassem num avião e despachassem enquanto voavam para o Rio: “Aprovamos até a reforma do telhado da alfândega de Uruguaiana”.
“Ele foi eleito vice-presidente, não estava preparado para as funções que teria de desempenhar”, afirmou Assis Brasil, chefe da Casa Militar nos últimos cinco meses do governo. Concordavam com o general os incontáveis militares e políticos que sempre enxergaram uma reedição intragável de Getúlio naquele estancieiro rico, boêmio e mulherengo, bom de conversa e de copo, que usava o apartamento no Edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace, para confabular em trajes íntimos com sindicalistas, dirigentes da UNE e políticos orientados para uma guinada radical à esquerda. Em agosto de 1961, as reações à renúncia de Jânio Quadros deixaram claro que, se dependesse da caserna, Goulart jamais seria o número 1. O almirante Sylvio Heck, por exemplo, pensou imediatamente no substituto ao ouvir do titular a decisão de abandonar o cargo. “Mas nós levamos tanto tempo para tirar essa gente do poder…”, lastimou o ministro da Marinha. “Como é que o senhor vai entregar-lhes novamente o governo?”, recordou a Jânio.
Forçado a engolir sem engasgos o purgante parlamentarista, tornou-se um presidente que nada presidia. Depois de recuperar os poderes que perdera, esperou até março de 1964 para assumir efetivamente o papel disputado por numerosos atores em ação no balaio de grupos, partidos e indivíduos que só não divergiam quanto à urgência das chamadas reformas de base. Entre tantos, nenhum concorrente lhe parecia tão incômodo quanto Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul que se elegera deputado pela Guanabara. “Ele não suportava mais a liderança do Brizola”, atestou Darcy Ribeiro. Segundo o chefe da Casa Civil, Jango decidiu transformar o comício de 13 de março no duelo decisivo com o cunhado, parceiro e rival.
Um dos quinze oradores que precederam Goulart, Brizola encerrou seu discurso com o repto: “O nosso presidente que se decida a caminhar conosco e terá o povo ao seu lado: quem tem o povo ao seu lado nada tem a temer”. Aos 45 anos, quem replicou foi um novo Jango. Num tom de voz muitos decibéis acima do normal, suando muito, o presidente encampou publicamente todas as reivindicações da constelação esquerdista. E passou das palavras à ação ao anunciar que assinara dois decretos que prenunciavam a reforma agrária e a estatização de bens privados ligados à produção de petróleo.
Ao apanhar a luva atirada por Brizola, o conciliador vocacional foi substituído por um radical em estado de beligerância ─ e tornou inevitável o choque das duas placas tectônicas que, perigosamente próximas desde a metade do século, dividiam o mundo político brasileiro. Entre 13 e 30 de março, o presidente de andar claudicante, imposto por uma doença venérea que paralisou seu joelho esquerdo, avançou em marcha batida pela trilha à beira do penhasco. Solidário com marinheiros e sargentos sublevados, juntou ao fantasma comunista e ao espectro da “república sindicalista” a visão da hierarquia despedaçada. Foi essa a assombração que colou as Forças Armadas, então às voltas com intrigas, ciumeiras e ressentimentos tão desagregadores quanto os que assolavam os antagonistas.
O presidente disposto a tudo para consolidar-se no poder foi ouvido pela última vez na noite de 30 de março. No jantar com os sargentos no Automóvel Clube, atribuiu a responsabilidade por um provável derramamento de sangue ao que qualificou de “forças poderosas e insensíveis à realidade nacional”. No dia seguinte, a notícia do levante em Minas ressuscitou o estancieiro pacato e o chefe político titubeante. Enquanto tropas vindas de Minas e São Paulo se aproximavam do Rio, Jango travava combates telefônicos para recompor o esquema militar que até a véspera parecia imbatível. Um a um, os comandantes de Exército aderiram ao golpe. Generais do povo e almirantes vermelhos sumiram. Abatido pelas decepções sucessivas, o presidente só rompeu o silêncio para evitar confrontos armados. O último a defender a resistência a bala foi Leonel Brizola. Na madrugada de 2 de abril, ao desembarcar em Porto Alegre, Jango foi para uma reunião na casa do general Ladário Telles, comandante do III Exército. “Tenho armas e homens em número suficiente”, informou o anfitrião. “Mas preciso que o senhor dê as ordens.” O próprio Brizola sugeriu providências urgentes e, anos depois, contou a resposta. “Aí Jango falou: ‘Se a minha presença no governo for à custa de derramamento de sangue, prefiro me retirar’. E foi pescar no Rio Uruguai.”
31/03/2014
 às 13:18 \ O País quer Saber

Especial VEJA: 50 anos depois

Publicado na edição impressa de VEJA
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Às 18 horas do dia 31 de março de 1964 o presidente João Goulart conversava com o general Peri Bevilacqua, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. O encontro era no Palácio Laranjeiras, rebuscada joia em estilo renascentista francês plantada num tapete de Mata Atlântica no coração do Rio de Janeiro, e o tema era o mesmo tratado pelo visitante anterior, o senador e ex-presidente Juscelino Kubitschek: ainda dava tempo de salvar o governo. Se rompesse com a ala mais radical, que queria mudar as regras do jogo a poder de greves e insubordinações na base militar, havia uma chance de arrastar de volta as forças já desencadeadas. Na verdade, isso não era mais possível, e o bilhete que o presidente recebeu, no meio da conversa, de seu ministro da Justiça, Abelardo Jurema, era a confirmação definitiva. “General, o general Mourão revoltou a 4a Região Militar em Minas e exige a minha renúncia. O senhor acha isto direito?”, perguntou a Bevilacqua.
Podia não ser direito, mas era a realidade. E não era só o general Olympio Mourão, embora a iniciativa em campo, e até uma certa precipitação, tivesse sido dele. Estranhamente calmo, até passivo demais para os que o cercavam, Jango já estava deposto na prática, e tomaria uma decisão errada atrás da outra, como um personagem de tragédia grega nos trópicos, impotente para mudar seu destino. Dois generais que não se davam mas viriam a se suceder na Presidência, Humberto de Alencar Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, disparavam telefonemas articulando a conspiração entre homens cheios de estrelas nos ombros, dúvidas operacionais na cabeça e uma única e inescapável certeza: do jeito que estava não iria continuar.
Praticamente no mesmo horário, em Goiânia, aonde havia ido para dar uma palestra, o dirigente comunista Jacob Gorender, posteriormente um notável historiador, descobriu na barbearia do hotel onde se hospedava o motivo pelo qual não chegavam os jornais do Rio: simplesmente não havia aviões decolando do Rio. “Arrumei a maleta, assinei as faturas na portaria e, ao botar os pés na rua, começou para mim um período de seis anos de clandestinidade.” Não só a vida de Gorender entrava num labirinto. Jango, Bevilacqua, JK, Jurema, Mourão, Castello, Costa e Silva e todas as demais figuras políticas e militares envolvidas nos dois lados do estranho golpe em que nenhum soldado disparou contra outro com voz de comando diferente seriam arrastados pelo incontrolável turbilhão histórico. Convencidos de que deviam interferir para salvar as Forças Armadas e o Brasil, saindo de cena em seguida, pois não eram generais de republiquetas centro-americanas ─ convicção partilhada pelo líder do Partido Comunista, Luiz Carlos Prestes ─, os chefes militares acabaram inaugurando um período de vinte anos de ditadura em que o próprio regime sofreu a corrosão moral autoinfligida das perseguições políticas e dos métodos abomináveis de combate a inimigos ideológicos erguidos em armas.
Com todos os seus interlocutores nos dias dramáticos que levaram à sua deposição, Jango manteve a mesma atitude. Aos cabeças quentes que pediam poder de fogo para resistir, dizia que não poria armas nas mãos de quem não sabia atirar ─ ele mesmo, criado na vida do campo no Rio Grande do Sul, era bom de pontaria e só perdia para a mulher, Maria Thereza. A uma proposta do ministro da Aeronáutica, Anísio Botelho, de jogar napalm nos recrutas do general Olympio Mourão, parados no meio do caminho entre Minas e o Rio, respondeu: “Vai queimar gente? De jeito nenhum”. O único avião de guerra que levantou voo para defender o governo jogou panfletos sobre Juiz de Fora. Imutável também foi o presidente com os cabeças frias, os que apelavam para romper com as várias alas à esquerda que puxavam o país para a ruptura institucional. Provavelmente o mais importante deles tenha sido o general Amaury Kruel, o comandante do II Exército, sediado em São Paulo. Eram amigos de longa data, Kruel havia batizado seu filho mais velho, João Vicente, e Jango contava, irrealisticamente, atraí-lo para o lado da salvação de seu governo. A última conversa entre os dois foi às 11h30 da noite de 31 de março. Kruel pediu, de novo, que o presidente mudasse de rumo. “Nunca tive apoio nem das forças políticas nem das Forças Armadas durante o meu governo, só tive dificuldades. Se agora, nesta hora cruciante, eu me livro dos que me cercam, equivale a um suicídio”, repetiu Jango. Meia hora depois, Kruel, que já estava com a tropa meticulosamente distribuída, proclamou: “O II Exército, sob meu comando, coeso e disciplinado, unido em torno de seu chefe, acaba de assumir atitude de grave responsabilidade com o objetivo de salvar a pátria em perigo, livrando-a do jugo vermelho”. No dia seguinte, 1º de abril, Jango partiu para o périplo final: foi do Rio para Brasília, de Brasília para Porto Alegre, de Porto Alegre para São Borja, dali para uma fazenda mais remota e, por fim, para o exílio no Uruguai.
O golpe que agora completa meio século começou a se tornar possível no dia 25 de agosto de 1961, quando o errático e até hoje enigmático Jânio Quadros abriu mão dos 5,6 milhões de votos que o haviam levado à Presidência do Brasil. Em lugar do homem dinâmico e cheio de ideias novas que Jânio parecia ser, o país se viu às voltas com Jango, beneficiado e ao mesmo tempo sobrecarregado pela herança getulista que já havia redundado num beco histórico sem saída. Simpático e com fama de ser uma espécie de playboy dos pampas, Jango funcionava bem na máquina partidária, mas não tinha o carisma nem o autocontrole de Getúlio Vargas. O ambiente tóxico era alimentado por um conjunto de correntes políticas irreconciliáveis, representadas em seu estado de furor primal de um lado por Leonel Brizola, o incendiário cunhado do presidente, e de outro pelo lança-chamas humano chamado Carlos Lacerda, o governador da Guanabara. As forças ideológicas conflitantes avançaram para a mais perigosa ecologia política, quando cada lado se considera existencialmente ameaçado pelo outro. O filmeO Encouraçado Potemkin era projetado no Ministério da Marinha como aula de instrução política para encorajar a rebelião entre os próprios marinheiros, e mulheres com terços na mão haviam impedido Brizola de falar num comício em Belo Horizonte. Uma análise feita na época assim retratava a situação: “Áreas enormes da população, sobretudo da classe média brasileira, estão sendo submetidas a um processo de hipnose que arrasta as camadas da população a um anticomunismo irracional e fanatizado. Dois grandes males põem em risco a paz e a liberdade de nossa pátria na conjuntura atual. São eles a inflação financeira e o radicalismo político. O medo de perder gera a mesma fúria agressiva que a cobiça de ganhar. Em breve, se não houver possibilidade de uma solução equilibrada, o destino da maioria dos brasileiros estará à mercê dos grupos extremistas minoritários, que, por um misto de ambição e medo, se atiram à ação direta, para a revolução ou para o golpe de Estado”.
O diagnóstico não poderia ser mais autorizado: foi feito por José de Magalhães Pinto, banqueiro, governador de Minas Gerais e o mais influente articulador político do golpe de 1964. Teria sido possível outro desfecho? Aos historiadores, esse tipo de especulação é proibido. Os leigos sempre podem levantar a questão. O general Peri Bevilacqua, aquele que no começo desta reportagem aparece apelando a Jango, acreditava que sim. Bastava Goulart ter lhe dito: “General, eu lhe peço que viaje imediatamente para Minas Gerais, vá se entender com seu amigo Mourão e convide para ir em sua companhia o senador Juscelino”. JK e Mourão eram amigos da infância passada em Diamantina. “Em menos de 24 horas, teria sido encontrada uma solução política para aquela gravíssima crise. Teria sido evitado que se quebrassem os padrões da legalidade, e a experiência mostra que, uma vez que esses padrões são quebrados, é muito difícil, depois, voltar ao regime ideal de respeito meticuloso à lei, ao regime de fidelidade à Constituição e às leis do país.” Sensatas palavras de um homem que viveu tempos insanos. Flagrantes dos acontecimentos de cinquenta anos atrás são mostrados, a seguir, através dos personagens que estavam nos lugares mais decisivos no dia 31 de março de 1964.
Colaboradores: André Petry, Augusto Nunes, Carlos Graieb, Diogo Schelp, Duda Teixeira, Eurípedes Alcântara, Fábio Altman, Giuliano Guandalini, Jerônimo Teixeira, Juliana Linhares, Leslie Lestão, Otávio Cabral, Pedro Dias, Rinaldo Gama, Thaís Oyama e Vilma Gryzinski.

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