domingo, 25 de março de 2018

"Incômodos intelectuais", por Roberto Romano


O Estado de São Paulo


O filósofo Claude Lefort, ao comentar O Arquipélago Gulag, disse que seu autor era um “homem incômodo”. De fato, nos regimes políticos que impedem a liberdade, quem pensa atropela a covardia dos servos. O ódio pelo raciocínio, batizado por Platão com o neologismo “misologia”, tem história antiga. No Brasil, como “em se plantando tudo dá”, ódios têm solo fértil.
A crônica dos choques entre intelectuais e poder forma labirintos de árdua saída. Além de Salomão, ou de Marco Aurélio, poucos líderes exibem atributos para governar e abrir sendas na ordem racional. Poucos seriam candidatos ao posto do rei e filósofo. Alguns, como Nero, tentaram unir a teoria à prática e causaram incêndios físicos e institucionais. Dionísio de Siracusa quis alugar Platão para fornecer lustre ao trono e repetiu de modo canhestro o que tinha ouvido do mestre. Logo publicou sua “filosofia” supostamente platônica. O autor de A República nega a paternidade: “Nunca escrevi ou escreverei algo sobre semelhantes matérias” (Carta 7, 341 c-d).
Vale recordar a disciplina da pesquisa, o rigor lógico, a profundidade adquirida no silêncio, longe dos rapapés. O pensamento recusa propaganda ou lisonjas cortesãs.
As rusgas de Sócrates com a democracia causaram a morte do filósofo, nada tolerado pelas assembleias da época. Sêneca acabou seus dias com os punhos abertos, após aconselhar o imperador.
Na Idade Média, João de Salisbury exige que o governante tenha saberes autênticos. “Illiteratus rex quasi asinus coronatus est” (Policraticus, Livro 4). E mais: “ Se um rei não possui letras, escute os letrados para que acerte em seus atos”. Governantes sem conhecimentos demonstram o que diz Júlio César contra os ignaros de seu tempo: Sylla nescivit literas, non potuit dictare (Sylla desconhecia as letras, não podia ditar). A frase é recolhida por Francis Bacon (Of Seditions And Troubles). Dirigir povos ou escrever eram práticas dominadas por Júlio César. Mas ele terminou coberto de sangue no Senado.
Maquiavel prima por avisar o líder, sobretudo o novato, a garantir as rédeas do governo. Mas termina pobre e sem cargos em Florença. Morus foi executado, sem que a sua obra maior, A Utopia – na qual descreve uma sociedade política ideal –, lhe servisse de ajuda. Prudente, Erasmo bajula príncipes e papas, não assume tarefas alheias à escrita. Arrisca críticas genéricas aos tiranos em matérias ligadas à guerra, a impostos, etc. Mas ele não chega aos extremos de Morus ou Lutero. Este último ataca o mando pontifício, mas se junta aos príncipes para esmagar a revolta liderada por seu colega Müntzer.
Descartes foge do Santo Ofício e da Sorbonne, a “corporação dos queimadores de livros” (Jacques le Goff) . Pascal insulta os jesuítas e topa com o violento poder real. Só escapa por acaso de ser desenterrado como os jansenistas e seus ossos expostos post mortem à ira do trono e do altar.
Richelieu demite e prende intelectuais contrários ao absolutismo, protege os que fazem a propaganda do regime. O elo desastroso das Luzes com os déspotas “esclarecidos” mostra o quanto é difícil o mister de aconselhar governantes.
Voltaire foge do colérico Frederico após caçoar das “porresias” reais (o termo é do próprio Voltaire). O monarca imagina-se poeta, mas é, sobretudo, idealizador do Estado como burocracia mecânica. E ai de quem não louvasse suas façanhas no Parnaso!
Diderot, quase bem-sucedido com Catarina II, acusa a soberana de despotismo. Com a revolução, quem admira a imperatriz culpa Diderot por tudo. Seu liberalismo democrático preparava o Terror... Após 1789 muitas caixas cranianas, que guardavam cérebros privilegiados, foram separadas dos corpos para glória do poder popular. Condorcet era uma delas.
O século 19 trouxe aos intelectuais vitórias de Pirro. Zola, após atenuar injustiças contra Dreyfus, nem do injustiçado recebeu gratidão. Lamartine, candidato à presidência da França, perdeu para um Bonaparte.
O século 20, tirados nomes como Bertrand Russell, conhece o ápice da obscenidade no trato entre intelectuais e poder. Em Vichy, presos ao nazismo (Carl Schmitt é seu ícone), bajuladores de Stalin e todos os que cantaram a música das ditaduras (no Brasil a colheita é farta), os cerebrinos assumem máscara abjeta. Os tiranos são louvados como nunca. Como exemplo, temos Getúlio Vargas na Academia Brasileira de Letras (seguido de mediocridades similares), com direito a lambidas em sua bota. O contributo do ditador à literatura se dá em parceria de Francisco Campos, numa obra imortal, A Polaca, mais os infames discursos em louvaminhas do Estado Novo. Hoje os nomes que adularam o ditador são “ carcaças gloriosas”, para recordar Agripino Grieco. Mas José Sarney é imortal, o baciamano ainda impera nas letras e na política nacional. Além de seus romances aguados, Sarney, pelo menos, nos poupa as suas “ porresias’.
Antes, intelectual se dizia no singular. Indivíduos assumiam tarefas em nome da humanidade, da ciência, da religião. Seguindo rumos previstos por Max Weber, surgiram acadêmicos burocratas que geram métodos para amoldar o mundo. Eles são acolhidos nos think tanks, quartéis onde doutores decidem sobre o público e o particular. No clima ideológico brasileiro de hoje, aqueles bunkers da teoria reforçam os setores que se digladiam pelo poder, exigem adesões absolutas, sem críticas. Cérebro festejado é o que obedece a linhas políticas. Para sectários, o intelectual serve como preservativo: usado, joga-se fora. Se ele serve à Causa, palmas! Se a recusa, calúnias na internet. Se ajuda a nobre luta, seu título é intelectual. Se não entrega a encomenda, recebe a pecha de “intelectual”. As aspas, abusadas por Goebbels e pelo Agitprop, impulsionam a tarefa costumeira de matar a inteligência.
Tem razão L. Canfora: pensar foi, é e será Um Ofício Perigoso (Ed. Perspectiva, 2003).
PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR E 'RAZÕES DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO'

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