segunda-feira, 10 de abril de 2017

Olavo de Carvalho - NOTINHAS DE VIAGEM

Olavo de Carvalho
Estas são algumas notinhas que vim tomando num laptop durante a minha viagem de volta de Boston, Massachusetts, à Virginia, conforme as idéias iam me ocorrendo ao longo de 569 milhas de estrada.
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No mundo maravilhoso da “diversidade”, só quem tem direito a uma cultura própria são as minorias, sobretudo estrangeiras. Idêntica pretensão, se alimentada pela massa da população local, é fascismo.
Os negros devem apegar-se às suas raízes africanas, os índios às suas raízes indígenas, os muçulmanos às suas raízes islâmicas. Governos, mídia e organismos internacionais os estimulam a isso e o defendem como a um direito humano inalienável. Mas tente um brasileiro, um francês, um espanhol, um argentino ou um americano mencionar suas raízes históricas nacionais, mesmo a título de simples hipótese, e todos os defensores da “diversidade” se erguerão num grito unânime: “Fascismo!”
As únicas raízes históricas que devem ser preservadas e cultuadas são aquelas que, por ser minoritárias e hostis ao conjunto, contribuem para dissolver a identidade histórica da maioria nacional. 
Mas – um momento! – a cultura islâmica é minoritária no Islam? Não é o Islam um Estado multinacional que hoje abrange um quarto da população terrestre? E não é ele, de todas as culturas, a mais intolerante a qualquer diferença, a qualquer “diversidade”? A ideologia da “diversidade” é, no fim das contas, nada mais que um instrumento do imperialismo islâmico que busca dia e noite impor a sua uniformidade a toda a espécie humana. Com o detalhe especialmente cínico de que o Islam não se contenta com discriminar as minorias por meio de piadinhas, de sorrisinhos de desprezo ou mesmo de insultos, mas o faz por meio da persguição aberta e do homicídio em massa. 
Onde é minoria, o Islam se faz de coitadinho, de vítima discriminada. Onde é maioria, impõe o seu domínio intolerante e cruel por meio da violência assassina. Especialmente contra as minorias cristãs.
Todo adepto da “diversidade” é cúmplice moral do assassinato sistemático de 150 mil cristãos por ano nos países islâmicos.
Na escala geo-estratégica, as culturas indígenas e africanas são inofensivas, irrelevantes. Muitas só sobrevivem, em versões totalmente modificadas e deformadas pela indústria do “show business”, como peças de museu sob as boas graças dos antropólogos, das universidades e dos ministérios da cultura. Uma vez que tenham servido ao seu propósito dissolvente, podem ser jogadas no lixo ou até premiadas com uma prorrogação benevolente do seu prazo de sobrevivência museológica. Mas com o Islam não é nada disso o que se passa. O Islam é uma cultura prepotente e dominadora de envergadura global. Seu destino, após a dissolução das culturas nacionais no Ocidente, não é nada museológico. É um destino glorioso de dominador do mundo. 
Mas ao Islam falta, como se sabe, uma teoria política própria, um modelo de Estado. Tão notável é essa ausência que, morto o profeta fundador da nova religião que se espalhara por todo o Oriente com uma velocidade alucinante, o primeiro conflito que rompeu sua unidade se travou justamente em torno da questão do modelo de Estado: governo civil ou regime teocrático-profético? Não encontrando resposta para essa pergunta nem no Corão nem nos “ahadit” (ditos e feitos do profeta), a comunidade cindiu-se em facções rivais cuja disputa, freqúentemente sangrenta, prossegue até hoje. A essa divisão inicial acrescentaram-se outras ao longo dos tempos. Nas terras do Islam, todas as fórmulas forem tentadas, todos os modelos adotados durante algum tempo, sempre roídos desde dentro pela fraqueza e instabilidade aparentemente invencíveis. Monarquias absolutas e constitucionais, impérios, repúblicas democráticas, ditaduras teocráticas e tiranias socialistas ali nascem e morrem numa floração impressionante de ambições fugazes e de fracassos instantâneos.
Logo, é de supor que o Islam, ainda que conquiste a hegemonia cultural por toda parte, não poderá se afirmar como poder politico mundial senão sob o formato de algum modelo de Estado copiado de idéias ocidentais.
Que modelo poderá ser esse?
Mais tarde escreverei sobre isso, mas só para adiantar o expediente, imaginem o que poderia ser um regime chinês, com sua síntese de economia capitalista e Estado comunista – a qual já foi chamada de “ditadura perfeita” – se a essa perfeição já quase indestrutível viesse somar-se a força uniformizante da religião islâmica. Os governantes islâmicos não são nem um pouco indiferentes a essa possibilidade infinitamente sedutora.

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A mocinha que, com ares de escrupulosidade científica, exigiu as fontes da informação que dei no simpósio M.I.T.-Harvard, segundo a qual oitenta por cento dos formandos das nossas universidades são analfabetos funcionais, não veio me procurar no fim da palestra para pedir os dados que eu lhe havia prometido.
Só posso concluir que ela não queria informação nenhuma, apenas brilhar por um minuto e encher um pouco de saco.

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Uma nação existe na medida em que seus habitantes se sentem mais identificados com ela do que com seus grupos raciais de origem, e na medida em que se identificam com ela diretamente e não por intermédio desses grupos. O Brasil é formado da unidade de PESSOAS brancas, negras, indígenas etc., e não da unidade desses GRUPOS. A partir do instante em que um cidadão participa da condição de brasileiro por intermédio da sua participação no seu grupo racial, é o grupo, e não esse indivíduo, quem desfruta da cidadania. E nesse caso o sistema de represenção política já não é nacional, nem regional: é racial. Há uma eleição entre negros, outra entre índios, etc. , e é como representantes desses grupos – e não dos Estados ou municípios, e nem mesmo dos partidos políticos -- que os candidatos eleitos tomam posse dos seus lugares no parlamento. Ou adotamos logo o regime do racial-corporativismo, ou tornamos ilegal o direito de falar em nome de uma representação racial no Parlamento. A atual mistura de democracia pluripartidária e de racial-corporativismo só pode levar à destruição progressiva da unidade nacional e à submissão da pátria à autoridade do globalismo.

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Quando uma cultura maior absorve a menor, os valores desta última são integrados, não destruídos. Perdem sua existência independente, mas ganham uma existência mais alta como elementos da cultura maior. Isso acontece quando uma nação abarca e domina as comunidades menores, raciais ou regionais, que encontra no seu território. Preservar a independência das culturas menores, bloqueando a sua integração na comunidade maior, é condená-las ao atavismo e à insignificância. Através da nação as culturas menores adquirem um lugar na cultura universal e são reconhecidas pela comunidade mundial. Se os índios americanos não tivessem sido integrados na nação americana, mas permanecessem como grupos marginais alheios à construção da unidade nacional, ninguém teria ouvido falar deles na Europa ou na Ásia. As culturas pequenas integradas na cultura maior perdem a sua existência sociológica para renascer como símbolos históricos de envergadura universal. James Fenimore Cooper fez mais para tornar os moicanos respeitáveis perante o mundo do que todos os caciques e pajés tinham feito ao longo de toda a existência da tribo.

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Por mais que os partidos de esquerda tenham se desmoralizado, o seu discurso ainda é o dominante – ou único – na esfera da moral e da cultura. Isso é assim pela simples razão de que o espaço aberto por Antonio Gramsci e pela Escola de Frankfurt, que incorpora e deforma quase toda a cultura Ocidental anterior, não pode ser preenchido só com Ayn Rand e von Mises, que constituem o repertório inteiro da parte mais falante da “direita”. Em resultado, praticamente toda a mídia, a classe estudantil, o pessoal do show business e os professores universitários que fizeram as cabeças deles estão convencidos, inabalavelmente, de que o aborto, a revolta feminista, o gayzismo, as identidades sexuais “flexíveis”, a abolição das fronteiras nacionais, a imigração em massa e o islamismo são o bem, enquanto as identidades e tradições nacionais, o cristianismo, a família, a educação considerada como transmissão de valores historicamente consagrados são o mal. Ninguém, até hoje, explicou por quê. Nem poderia fazê-lo, de vez que para argumentar em favor de alguma coisa é preciso levar em consideração a hipótese oposta, e isso causa tanta indignação e horror entre os “progressistas”, que a emoção entala na ganganta e não pode se expressar senão sob a forma de gritos, imprecações, rotulações pejorativas e, como se diz com freqüência, “manifestos de repúdio”. 
Um breve exame dos ideais a que se confere o monopólio do bem mostra que são não só arbitrários e barbaramente subjetivos mas muitos deles contraditórios e mutuamente excludentes. A ânsia incontida de promovê-los todos juntos, como numa espécie de front universal contra o inimigo, impede, proíbe mesmo, todo esforço de justificar racionalmente esse matrimônio de incompatibilidades, essa espécie de sexo grupal ideológico entre gatos, hienas e tartarugas. Mais ainda, a incongruência do conjunto acaba se revelando útil à propaganda da causa porque exerce sob o público o efeito de estimulação contraditória apto a paralisar a sua inteligência e colocar instintivamente em lugar dela a adesão entusiástica a algo que não apenas não se compreende, mas não se deseja nem se pode compreender. Nenhuma causa razoável pode despertar uma adesão tão total, tão enfática, tão emocionante, tão arrebatadora. Só o absurdo conquista mentes e corações instantaneamente, por mera impregnação de contato. Embora esse fenômeno tenha todas as características da autopersuasão histérica, o histérico em pessoa está desprovido do poder de diagnosticar a sua própria histeria e portanto vê nela a tradução imediata, fiel e moralmente obrigatória de um imperativo categórico, de uma imposição divina, de algo que tem de ser porque não pode não ser. A fórmula entre irônica e hiperbólica com que Agostinho exaltou o cristianismo – “credo quia absurdum”, “creio porque é absurdo” – perdeu todo caráter irônico e hiperbólico e se transformou na expressão literal e exata do processo cognitivo de muitos dos nossos contemporâneos.

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Não é indiferente a esse estado de coisas o fato de que os frankfurtianos, criadores de boa parte dele, só acreditavam na força da negatividade e por isso só incorporaram elementos da cultura milenar do Ocidente na medida em que estes possuiam, seus olhos, algum poder dissolvente e corruptor. 

Theodor W. Adorno, temeroso e escandalizado quando estudantes intoxicados de “dialética negativa” invadiram a sua sala de aula demolindo tudo, foi a mais literal versão moderna do “Aprendiz de Feiticeiro”.

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Só o demônio em pessoa pode ter sugerido – e só idiotas incuráveis podem ter acreditado – que um jovem, se nada souber do passado, será mais criativo. Tento imaginar, por exemplo, Shakespeare escrevendo suas peças, ou Dante sua “Divina Comédia”, sem nada saber da Bíblia, de Platão e Aristóteles, da filosofia escolástica, de Homero e Virgílio, do teatro grego e da história das suas nações – para não falar da gramática dos seus respectivos idiomas. Se tudo o que um estudante deve aprender na escola é o que está em moda no “show business” quando da sua formação juvenil, o único resultado que se pode obter com isso é envelhecê-lo antes do tempo e prepará-lo para ser incomparavelmente tedioso quando chegar a sua velhice biológica. Se os educadores de hoje tivessem moldado a minha juventude, eu agora só teria como modelos estéticos os Beatles, Neil Sedaka, Rita Pavone, Erasmo Carlos, Wanderléia e Cely Campelo. 

Maurice Pradines definiu a consciência como “a memória do passado preparada para as tarefas do presente”. QUANTO, do passado, podemos precisar para compreender o presente, interpretá-lo e poder agir eficazmente sobre ele, seja na arte, na política, na educação ou em qualquer outro domínio? A única resposta possível é: Tudo o que pudermos lembrar, e mais alguma coisa. 
Um sistema educacional que, a pretexto de “liberar” as mentes juvenis, se recusa a lhes transmitir a experiência acumulada na tradição, só faz reduzir o seu campo de alternativas àquilo que possa surgir do seu crescimento biológico espontâneo e da experiência uniforme de uma só geração. O resultado é a mesmice ruidosa e histérica de todos os produtos supostamente artísticos da juventude universitária atual. Especialmente na medida em que a experiência da sua geração se reduz a fantasias sexuais e à repetição de chavões injetados em suas mentes pela indústria do “show business”.
O mundo só será feliz quando o último ministro da Educação for enforcado nas tripas do último funkeiro.

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Tempos atrás já expus o problema central da “democratização da cultura”. Num primeiro momento, esse termo significa espalhar entre as multidões a possibilidade de acesso aos bens culturais mais altos. Na fase seguinte, ele sugere que não cabe aos difusores e sim aos receptores decidir quais bens são mais altos, mais merecedores de difusão. Num terceiro momento, proclama-se que a mera distinção de bens mais altos e mais baixos é antidemocrática, que o certo é “todo es igual, nada es mejor”. Por fim entende-se que a democratização da cultura deve consistir na negação, destruição e supressão ostensivas e sistemáticas dos bens anteriormente julgados mais altos, substituindo-os por qualquer coisa que seja democraticamente aprovada no momento e que pode ser substituída por outra coisa amanhã ou depois. Se os bens mais altos eram por isso mesmo os mais duráveis, agora só o fugaz e perecível merece ser transmitido, valorizado e protegido pelo “establishment” educacional. Dante, Shakespeare e Camões são substituídos pelo sucesso televisivo da semana, incumbido de persuadir os jovens de que, pelo simples fato de ter nascido depois, eles já sabem mais do que todas as gerações anteriores, cujo posto de transmissores preferenciais da educação deve ser-lhes arrebatado e entregue à primeira voz juvenil que fale mais alto. Completado o processo, a democratização da cultura consiste agora em proibir e bloquear o acesso das multidões aos bens de cultura mais altos. 
Isso é LITERALMENTE assim, tanto nos países “mais cultos” quanto nos “mais incultos”. A única diferença é que nestes últimos a transformação da democracia cultural no seu oposto encontra menos resistência e se realiza em prazo muito mais breve, às vezes sem que nem mesmo os círculos de pessoas supostamente “mais cultas” – se ainda existem -- se dêem conta do que está acontecendo.
Todo igualitarismo, fora do estrito domínio jurídico, da igualdade perante a lei, é uma monstruosidade e um crime. Só as pessoas de mentalidade inferior pretendem ser iguais em sentido geral e absoluto. Os superiores sempre admitem que sua superioridade é relativa, que sempre existe alguém que lhes é superior.

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Já conheci muitas mulheres bem superiores aos seus maridos, e me parecia natural e justo que mandassem na família. Mas pretender que todas as mulheres, pelo simples fato de ser mulheres, devam ter autoridade igual à dos maridos é abolir toda distinção de capacidades e proclamar a autoridade democrática da inépcia, desde que feminina.
Não faltará quem pergunte “Mas por que é preciso que alguém mande?”, sem perceber que o simples fato de alguém formular essa pergunta é a maior prova daquilo que estou dizendo.

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A internet está cheia de almas cândidas sempre em busca de algum detalhezinho que lhes permita alardear, com ares triunfais: “Ah-ha! Desta vez peguei o Olavo de Carvalho no pulo!” O mais recente foi um rapaz que aspira, acima de tudo, a ser o Paulo Porcão quando crescer. Como eu disse que a inteligência humana tem, por si, o poder de elevar-se à noção do infinito e do eterno, ele viu nisso a prova, tão longamente buscada, de que não sou católico e sim um perigoso gnóstico. Ah, que seria da Igreja sem esses bravos guardiões da fé? Infelizmente o que eu disse é uma tradução quase literal da doutrina da Igreja. Se a inteligência humana não tivesse em si e por si aquela capacidade, não lhe bastaria, para exercê-la, a assistência ORDINÁRIA do Espírito Santo; seria preciso a ação EXTRAORDINÁRIA, miraculosa portanto, o que faria das doutrinas de Parmênides e Heráclito e de quantos mais filósofos perceberam a existência do infinito e do eterno nada menos que revelações divinas.

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Se examinamos os grandes romances do passado, “Ilusões Perdidas”, “O Vermelho e o Negro”, “Crime e Castigo”, “Guerra e Paz”, “Grandes Esperanças”, “O Processo Maurizius”, “A Montanha Mágica”, não podemos escapar à conclusão que define o romancista, acima de tudo, como um historiador do possível, um biógrafo de vidas imaginárias. E justamente porque se trata de vidas imaginárias é que ele consegue inserir tão bem o drama das almas individuais no contexto social, histórico e cósmico que as enquadra. Ao historiador científico essa conexão íntima pode escapar, diluindo-se no oceano de detalhes, documentos e testemunhos, a não ser que ele preencha os hiatos com uma imaginação de romancista. Só a imaginação tem o poder de sintetizar em símbolos eloqüentes as totalidades que fogem ao puro enquadramento conceptual. Mas, à medida que o contexto sócio-histórico se torna mais complexo e inabarcável, o gênero “romance” só sobrevive à força de recorrer cada vez mais a instrumentos próprios da poesia, onde qualquer intuito de verossimilhança fática pesa menos que o impacto das sínteses puramente verbais. A linguagem do romancista vai-se tornando cada vez mais ricamente poética – e portanto enigmática -- à medida que a sua imaginação histórica e sociológica se revela mais impotente para apreender e narrar as realidades da experiência humana num quadro diabolicamente caótico. Dito de outro modo, o “narrar” e o “descrever” próprios do romancista vão sendo cada vez mais substituídos pelo “expressar”, que é a ação própria do poeta. Observo isso, claramente, nas obras de James Joyce, Guimarães Rosa, Thomas Pynchon, Vergílio Ferreira, Lobo Antunes, só para dar alguns exemplos soltos. Raros são os romancistas que, como o Leonardo Padura de “El Hombre que Amaba a los Perros”, abdicam da pura construção poética para ater-se aos recursos narrativos e descritivos do romance tradicional. Descontados certos trechos de William Faulkner (as primeiras cinqüenta páginas de “O Som e a Fúria”, por exemplo), um perfeito encaixe dos instrumentos da poesia na arte do narrador só encontrei, até agora, em alguns romances de José Geraldo Vieira. Não em todos. “A Túnica e os Dados” parece-me pura invenção poética. Mas em “A Mulher que Fugiu de Sodoma” e “A Ladeira da Memória” os trechos poéticos se ajustam tão bem ao quadro narrativo que não requerem nenhum esforço de interpretação (inevitável em quase toda a poesia moderna) e se lêem como se fizessem parte do fluxo natural dos acontecimentos. Ocorrem-me, no momento, particularmente, no primeiro desses romances, o episódio em que Lúcia, levada ao desespero por uma crise doméstica, sai vagando a esmo pelas ruas numa noite de tempestade, e aquele em que, no segundo, o velho desembargador aposentado, descobrindo-se com surpresa proprietário de um pardieiro imundo, distribui presentes de Natal aos seus moradores como uma espécie de compensação do vexame involuntário. Aí a inventividade verbal quase alucinante expressa tão bem o sentido imediato dos acontecimentos, que acaba se tornando indistinta da narrativa “normal”.

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De todos os participantes da “Brazil Conference” (Harvard-M.I.T.), com a tímida e parcial exceção do assessor presidencial Hussein Kalout, nenhum me pareceu capacitado ou disposto a discutir os problemas na escala e no nível em que os coloquei. Longe de inaugurar um diálogo autêntico, que exige a interpenetração das consciências, o encontro – ou desencontro – se limitou a exemplificar o próprio estado de coisas que lhe incumbia diagnosticar e corrigir. Não apenas, como afirmou o organizador David Pares à BBC, cada um só transmitiu aquilo em que já acreditava de antemão, mas – acrescento eu – todas as opiniões prontas refletiam posições fixas firmadas ante questões de detalhe – econômicas, jurídicas ou partidárias, quase sempre -- sem nenhum esforço de absorver as várias perspectivas parciais numa visão articulada de conjunto. Nem mesmo numa narrativa histórica. A “nação” que cada um enxerga era – e é -- uma projeção do cargo ou função que ele ocupa, não o quadro geral que os abrange a todos e os explica. 
Se eu esperava poder despertar a atenção de alguém para a noção de “história cultural” como princípio articulador, não posso dizer que não logrei nenhum resultado na platéia, mas com certeza nada obtive dos debatedores. 
Como sempre, não foi um diálogo entre consciências vivas, mas uma justaposição de poses congeladas e perfeitamente inconexas. Inconexas até mesmo nas suas pretensas “divergências”.

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O suprassumo do desencontro deu-se com o meu companheiro de mesa, o ex-senador Eduardo Suplicy, eu tentando enquadrar o drama brasileiro num panorama histórico-cultural de seis décadas, ele discursando em fator de um projeto de lei com o qual pretende dar um final honroso a uma carreira política não muito bem sucedida. Como eu previa, não houve debate nenhum. Ele não contestou a minha idéia nem a eu a dele, muito menos concordamos, pelo simples fato de que uma coisa não tinha nada a ver com a outra.
O projeto dele – uma renda mínima para cada brasileiro – nem é de todo mau, com a ressalva de que, como observou o meu amigo Sílvio Grimaldo, se os petistas queriam mesmo imitar o governo do Alasca, que distribui entre os moradores do Estado os lucros sobrantes do petróleo, não deveriam ter começado por demolir a Petrobrás.

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Como poderão as crianças do futuro “escolher o seu sexo”, se as diferenças entre os sexos terão sido abolidas e proibida como preconceito reacionário toda menção a elas? Pior ainda: como poderá haver um terceiro sexo, ou um quarto e um quinto, se os dois primeiros não existirão mais? E, para terminar: como poderá um menino “sentir-se mulher” se não haverá mais modelos do feminino e do masculino para ele comparar?

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Tantos escritores e poetas modernistas escreveram contra todo intuito “reconfortante” e “edificante” na arte, que acabo me perguntando se a obrigação de entristecer, deprimir e destruir não é um dos mandamentos do decálogo modernista. A impressão que fica é que toda obra de arte “high brow” tem de ser obrigatoriamente deprimente e negativista, o reconforto e o consolo não passando de comodismo e filistinismo burguês. Mas nada justifica adotar isso como regra, de vez que a maior obra de arte literária de todos os tempos, a “Divina Comédia”, não tem outra finalidade nem motivo senão elevar e edificar. A tragédia grega tinha um propósito francamente edificante: fazer o povo comover-se com o destino injusto do herói, sobretudo o estrangeiro, o inimigo, e estimular o sentimento da piedade. A tragédia ou tragicomédia moderna não infunde piedade em ninguém: só revolta vã contra o destino.

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