quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

7 coisas que aprendi trabalhando no sistema prisional brasileiro - por Filipe Azevedo Rodrigues


7 coisas que aprendi trabalhando no sistema prisional brasileiro

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* Filipe Azevedo Rodrigues está cursando Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais na Universidade de Coimbra, em Portugal, e foi Diretor da Escola Penitenciária do Rio Grande do Norte.
Entrei no sistema prisional brasileiro com 22 anos de idade, no meu último ano de Curso de Direito numa prestigiada universidade pública brasileira. Soou muito esquisito para muitas pessoas próximas a mim ter prestado tal concurso e, enfim aprovado, passar a exercer o cargo de agente penitenciário. Mas no país do funcionalismo público o que vale é a “estabilidade”, em que pese o risco no qual estive envolvido.
Após cinco anos, exonerei-me do cargo e não me arrependo desse período, pois tive a sorte de conviver com bons profissionais e de ter lidado de forma correta com as crônicas crises vivenciadas.
 
O importante, por outro lado, foi o que aprendi – muita coisa. Assim, lanço mão das sete lições mais valiosas que pude tirar, sobretudo relacionadas com o colapso de décadas das prisões brasileiras, evidenciado nos últimos dias nos estados de Amazonas e Roraima.

1. O Crime Organizado é mais organizado que o Estado.

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A vida pode ser retratada nos cinemas, mas dificilmente Hollywood conseguiria traduzir a origem e evolução das organizações criminosas brasileiras.
Digo isso porque os enredos de máfias italianas e cartéis hispano-americanos pouco se aplicam ao nosso caso. As famosas organizações Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC) têm origem comum. Surgiram nos presídios brasileiros há décadas como grupos de presos que habitavam um ambiente prisional de muralhas e grades precárias, cárcere pelo cárcere.
A autopreservação ensejou os grupos e eles prosperaram em presídios abandonados como todo e qualquer serviço público brasileiro.
O curioso é que pouco mudou desde as décadas de setenta e oitenta, do alvorecer do crime organizado brasileiro para o surgimento das novas famílias e sindicatos do crime (nomes comuns às novas organizações).
Na verdade, a população carcerária é imensa e amontoa-se nos estabelecimentos penais. Alimentação, vestimenta, espaço para dormir, proteção e demais pormenores da vida no cárcere tornaram-se produtos fornecidos (ou permitidos) pelos antigos aos novos e a moeda vai desde a entrada de um celular na genitália de um familiar do apenado devedor a integrar determinado grupo e tirar a vida de um rival dentro da prisão.
Assim, o crime organizado se forma e se sofistica, passando a atuar e cobrar os débitos dos seus membros quando regressam à liberdade. Isto é: mata-se e rouba-se para pagar a proteção e alimentação recebidas na cadeia, sob pena de perder a vida na mão de um membro mais leal e em dia com as obrigações do grupo.
Como então não perceber que o dito sistema prisional gesta o crime organizado no Brasil?
A pergunta é necessária. O fato é que ele o produz e que a sua capacidade de retroalimentação foi potencializada nos últimos anos, a exemplo da famigerada matança da Família do Norte (então desconhecida), vitimando membros do PCC em Manaus (então conhecido como apenas o “Comando” da Capital de São Paulo).

2. Nós não fazemos a menor ideia de quem prendemos.

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É comum ouvirmos que só se prende no Brasil “preto e pobre”. O mais interessante, no entanto, é não sabermos o quanto.
Certa vez, estive em um debate numa universidade sobre a crise no sistema prisional do Rio Grande do Norte. Nele, estava presente a Coordenadora para Igualdade Racial da Secretaria de Justiça do Estado. Na ocasião, afirmou-se que no Rio Grande do Norte os cárceres estavam superlotados de negros. O curioso foi que eu havia recebido no mesmo dia a fotografia de mais de trinta foragidos da maior penitenciária do Estado – e, entre eles, haviam apenas três negros.
A par de toda essa questão, o que me ficou na cabeça desde esse dia é que, de fato, não sabemos quem são os nossos presos. Não se sabe quantos estão no cárcere, muito menos quem são essas pessoas: naturalidade, estado civil, gênero, orientação sexual, profissão, renda, escolaridade, cor.
O próprio IBGE manifestou-se recentemente no sentido de que nunca houve um censo carcerário – e eu me pergunto se haveria a necessidade de o IBGE se prestar a isso. Afinal, bastava registrar essas informações básicas quando se prende alguém – e, então, alimentar um simples banco de dados virtual.
Faz-se o primeiro? Não. Funciona o banco de dados? Muito menos.

3. Nós não temos um “sistema” penitenciário.

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Usa-se muito a palavra “sistema”, “sistema prisional”, “sistema penitenciário” ou apenas “o sistema”. Mas o erro geral já começa na falta de humildade em reconhecer que a palavra não pode ser aplicada ao que temos. Sistema pressupõe uma organização funcional e harmônica. E nele, órgãos e unidades devem operar de maneira integrada.
No Brasil, cada Estado tem sua estrutura prisional e seu espaço de jurisdição próprios, muitas vezes sem a devida comunicação. Isso porque dentro de um mesmo Estado não é raro encontrar realidades de completo caos organizacional. Os procedimentos mais simples e óbvios do funcionamento de um dado presídio, como as visitas, são invertidos de ponta à cabeça em outro estabelecimento penal na mesma cidade. Familiares e advogados passam semanas sem saber para onde foi transferido um preso e qual a razão que motivou a transferência, muitas vezes por mera desorganização.
Para o Estado, falta padronização de procedimentos e controle dos servidores penitenciários uniforme. Para os preso, sobra organização em âmbito nacional, vide o exemplo do PCC em Manaus.

4. O Estado não funciona para os cidadãos livres. Como iria funcionar para os presos?

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A precariedade em todos os serviços públicos, principalmente naqueles ditos essenciais como saúde e educação, não poderia condizer melhor com a incompetência estatal na gestão penitenciária. Não se consegue prestar um atendimento digno no SUS a um cidadão livre – por que raios conseguiríamos isso a quem está confinado em nossas prisões? Enquanto você lê esse texto, há doentes psiquiátricos, absolvidos judicialmente pela sua condição psicótica grave, que estão encarcerado com presos comuns, enquanto deveriam encontrar-se em hospitais, sendo tratado como pacientes, não como delinquentes.
Não é de se imaginar, de igual modo, que a educação seja transformadora no Brasil. Educar em presídios só é possível, em regra, se a organização criminosa que o arregimentou patrocine seus estudos.

5. Quem são os responsáveis pela crise?

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Acho que você sabe perfeitamente essa resposta: o Estado é o responsável. Ponto. Mas nunca me conformei em ficar apenas nessa acusação abstrata. As leis brasileiras não são nem brandas, nem severas. Basta cuidar de pesquisar o que ocorre mundo afora para chegar a essa conclusão. O processo para se alcançar as punições, entretanto, não me parece muito racional e, sem dúvida, ele está assim posto na lei. Seria possível evitar muitas prisões se houvessem instâncias de solução de conflitos mais eficientes e aplicação de penas pecuniárias com maior celeridade para crimes contra o patrimônio e de menor potencial ofensivo, em especial.
Essa é uma parcela de responsabilidade do legislativo federal (deputados federais e senadores), que pouco se importa com os resultados da nossa política criminal – se importa muito mais com soluções demagógicas e populistas.
Mas as soluções imediatas estão, em princípio, nas mãos do Poder Executivo. A responsabilidade é dos Governadores dos Estado em gerir os estabelecimentos penais e dotá-los da estrutura mínima para que, pelo menos, evitem-se massacres como o de Manaus.
A União (Presidente da República e Ministro da Justiça) tem também seu papel, afinal conta com um fundo bilionário de recursos alimentados por diversas fontes (tal como a loteria federal), destinado ao sistema penitenciário. E a questão também envolve o fato de o acesso a tais recursos ter sido restringido nos últimos anos para compensar o déficit nas contas públicas federais. As gestões estaduais, em vários casos, costumam ser amadoras e suscetíveis à distribuição político-eleitoral dos cargos públicos e a União, por sua vez, sempre se acomodou na sua posição institucional de responsabilidade indireta, ao ponto de restringir o aporte financeiro devido – o que, sem dúvida, contribuiu para essas dezenas de mortes das últimas semanas.
Entretanto, a experiência me trouxe à tona um personagem ainda mais protagonista nessa história macabra das prisões brasileiras. Não há como deixar de encarar a responsabilidade de milhares de juízes que prendem compulsivamente antes mesmo de uma condenação, ao passo que negligenciam suas funções de contínuos fiscais dos estabelecimentos penais.
Explico melhor.
A prisão, em regra, é pena e, como tal, aplica-se àquelas pessoas condenadas pela prática de um dado crime. Mas existe a possibilidade de um juiz determinar o encarceramento por cautela ou prevenção, antes mesmo de um suspeito ser denunciado e tornar-se réu. São as chamadas prisões processuais. Estas têm sua importância, mas, conforme o nosso Direito e a lógica da coisa, deveriam ser usadas excepcionalmente, até porque não há dúvida que é possível e mais barato controlar os passos de suspeitos de crimes através de tecnologias muito mais simples e eficientes, como a monitoração eletrônica.
O problema reside justamente na falta de lógica na atuação de muitos magistrados durante a condução dessas investigações e processos. A prisão vira a regra e, muitas vezes, levam-se inocentes ou delinquentes sem envolvimento em crimes graves para aquela estrutura paralela montada nas cadeias brasileira, do pague e se alie ao crime organizado para sobreviver enquanto preso.
Praticamente 25% de todos os presos no Brasil encontram-se nessa situação – são presos processuais, legalmente inocentes, sem sentenças proferidas em processos inexplicavelmente lentos, de modo a contribuir para o alistamento obrigatório no crime organizado, tudo em razão do “na dúvida, prende”. Pode parecer mais fácil, mas o resultado está diante dos nossos olhos há tempos.
O outro lado da responsabilidade do Judiciário brasileiro está nas mãos dos juízes que acompanham as execuções das penas e a regularidade dos estabelecimentos prisionais.
Pois é, existem juízes com essa exclusiva atribuição: são os juízes da execução penal. Cada comarca brasileira com algum presídio nela instalado deve possuir um magistrado com tal função, sendo comum, nas maiores cidades, haver um ou mais juízes atuando nisso.
Dentro de suas atividades e deveres impostos por lei, cumpre aos juízes da execução penal inspecionar mensalmente os estabelecimentos penais sob sua responsabilidade, a fim de tomar as providências necessárias para seu regular funcionamento – devendo, inclusive, determinar a interdição do presídio e a apuração da responsabilidade de seus gestores (membros do Poder Executivo) quando constatada qualquer irregularidade. Quando foi a última visita dos juízes de Manaus ao Complexo Penitenciário Anísio Jobim? Não constaram irregularidades? Quais providências tomaram? O presídio foi interditado?
Essas perguntas, por óbvio, devem ser estendidas e permanentemente refeitas aos magistrados de todo país que desempenham e são remunerados para tal função.

6. Sim, um sistema penitenciário sustentável é perfeitamente possível.

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Embora tudo que comentei até agora não seja de despertar esperança, não posso deixar de dizer que grandes crises também podem ser encaradas como momentos de mudança, de oportunidade.
Aprendi também que um verdadeiro sistema penitenciário pode perfeitamente ser sustentável e não pesar tanto nas contas pública e nos contribuintes.
Do ponto de vista jurídico, a Lei de Execução Penal brasileira é mais do que suficiente para isso. E ela dispõe de mecanismos interessantes.
Há a divisão do cumprimento da pena de prisão em três regimes progressivos, inspirados no modelo irlandês de cumprimento de pena. O primeiro é o chamado regime fechado, cuja prisão é cumprida em penitenciárias, estabelecimentos de segurança de custo mais elevados – mas é dever do Estado oferecer, já nesses ambiente, condições de profissionalização, educação e trabalho. Ultrapassado uma fração da pena com bom comportamento, o apenado faz jus à progressão ao regime semiaberto, em colônias agrícolas ou industriais penais, onde o trabalho é ainda mais evidenciado, desde o nome dados aos presídios desse regime. Por fim, completada mais uma fração da pena, o regime aberto é cumprido nas casas de albergado, que, conforme a Lei, recebem os apenados para o repouso noturno enquanto desempenham uma ocupação formal durante o dia (trabalho ou educação).
A chave da sustentabilidade, portanto, está no trabalho. A própria Lei oferece vários incentivos a todos os agentes envolvidos para que o trabalho efetivamente ocorra. Ao preso, a remição da pena: a cada três dias trabalhados, um dia a menos de pena. Ao Estado, não é necessário que ele ofereça os postos de trabalho, pois a Lei lhe permite conveniar com empresas privadas para recrutarem essa mão de obra. Às empresas, o preso pode ser remunerado em 75% do salário mínimo, desempenhando a mesma jornada de um empregado normal, porém sem direito a gozar e ser remunerado por férias, décimo terceiro salário ou fundo de garantia por tempo de serviço.
Brasil afora, algumas experiências nesse sentido vêm sendo bem sucedidas, sem contar o interesse de promoção da imagem e responsabilidade social de todos os envolvidos. O problema, entretanto, está, como visto, no cumprir a Lei ser somente “algumas experiências”. Não há, nos cárceres brasileiros, o hábito de cumprir a lei, o que dificulta bastante a missão de ressocializar os apenados.
Não posso fechar esse tópico, porém, sem apresentar a minha impressão justamente sobre o que, para mim, seria ressocializar, entre a utopia da expiação plena dos pecados e o negativismo dos que consideram criminosos de irrecuperáveis. A criminalidade brasileira como está posta evidencia que os criminosos não têm preço a pagar pela vida no crime. Não há custo de oportunidade em deixar de lado uma vida tida como honesta, pois inexiste essa opção. O estereótipo do criminoso habitual é jovem e ocioso, com pouco estudo, muitas vezes porque abandonou o colégio em meio a uma sociedade criminógena. Não há valor no trabalho lícito porque não se ensina e forma profissionais no Brasil. Aqueles afortunados que terminam o ensino superior já não são formados para alcançarem um posto de trabalho e desempenhar uma profissão de fato. O gap entre educação e trabalho no Brasil é demasiadamente grande e a massa de desempregados que nunca se interessaram por se empregar contribui bastante para o crime. O trabalho e a formação profissionalizante é, antes de meio de ressocialização, uma tentativa de socializar.

7. As soluções privadas como uma luz no fim do túnel.

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Acima, já ficou claro que o trabalho é central na (res)socialização dos apenados e o meio de viabilizá-lo conforme a Lei está na parceria entre o Poder Público e o setor privado. Empresas demandam mão-de-obra, recebem incentivos para contratá-la (inclusive fiscais) e podem investir naquele funcionário que fará sua transição do cárcere para a liberdade empregado.
A principal experiência que conheci nesses últimos anos e o modelo mais eficaz de ressocialização, verificado em baixíssimos percentuais de reincidência, é o empreendido pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), entidade privada, com o objetivo de gerir estabelecimentos penais em atenção aos ditames da Lei de Execução Penal e conforme uma metodologia fundamentada em rígida disciplina, “respeito, ordem, trabalho e envolvimento da família do sentenciado”.
Os resultados são estudados há décadas e não há como questionar, nessa perspectiva, o êxito do modelo privado da APAC. Os motivos da resistência enfrentada para expandi-lo ainda me parecem muito nebulosos, passando um pouco pelo corporativismo dos servidores públicos (a APAC não usa mão de obra estatal; não há servidores, policiais, agentes penitenciários, apenas voluntários) até frequentemente pela ignorância do que é a entidade e de como funciona pelos próprios gestores públicos (todos aqueles que listei no tópico 5).
 
Outra alternativa são os presídios construídos e geridos em regime de cogestão, conforme a Lei das Parcerias Público-Privadas. A principal unidade com esse formato no país é, sem dúvida, o Complexo Penal de Ribeirão das Neves, cuja modulação do contrato de concessão definiu que o Poder Público do Estado de Minas Gerais permanece responsável pela segurança armada de muralhas e externa, enquanto a concessionária incumbe-se de satisfazer indicadores rigorosos de educação, trabalho, saúde, assistência jurídica e psicológica a apenados e familiares.
Sobre o custo de ambos os modelos privados, estima-se que a APAC opere com custo inferior por preso do que aquele que o Estado drena do Erário para permitir rotineiras violações de direitos humanos e massacres como o de Manaus – contudo os estabelecimentos geridos pela APAC, dependente de voluntários, não teria a capacidade de satisfazer toda a demanda de vagas. Por sua vez, as PPPs como a de Ribeirão das Neves cobrariam um custo mais elevado por preso do que o Estado opera, mas não há como comparar o rigor do cumprimento dos direitos do preso, todo o cuidado com a segurança e a responsabilidade compartilhada com a concessionária.
As soluções privadas devem ser postas à mesa e debatidas, inclusive para aperfeiçoá-las e para refutar modelos precários de terceirização como o existente no presídio de Manaus onde ocorreu a tragédia das últimas semanas. O fato é que devemos fazer da crise um momento de reinvenção do maior símbolo de atraso do nosso país. Ou então estamos condenados à barbárie.

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