quarta-feira, 26 de março de 2014

Vargas Llosa homenageia Revel, um intelectual crítico do antiliberalismo francês.

QUARTA-FEIRA, 26 DE MARÇO DE 2014

Vargas Llosa homenageia Revel, um intelectual crítico do antiliberalismo francês.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa homenageia Jean-François Revel, o intelectual que remou contra a corrente antiliberal e antiamericana do pensamento francês. Boa leitura:

A obra de Jean-François Revel (1924-2006) não consiste apenas nos 26 livros que escreveu e que, além da política, abrangem muitos gêneros da sua enciclopédica cultura: filosofia, arte, história, literatura, informação, gastronomia. Também consiste nas centenas de artigos que publicou em revistas como L'Express, Le Point eCommentaire, e que, assim como nos casos de um George Orwell ou de um José Ortega y Gasset, são textos nevrálgicos da sua reflexão intelectual. Porque Revel, embora tivesse tido uma formação acadêmica de alto nível – Escola Normal Superior, onde foi discípulo de Louis Althusser, e professor associado – renunciou à carreira universitária, depois de ter lecionado no México e na Itália, para se dedicar ao jornalismo, que alcançou na França, graças a ele, o brilhantismo que teve antes na Grã-Bretanha e na Espanha graças aos autores de O Abate de um Elefante eA Desumanização da Arte.

Por que fez isso? Acredito que para chegar a um público mais amplo que o do âmbito universitário e, talvez, acima de tudo, para não se ver arrastado para o obscurantismo retórico, aquela forma de logomaquia vaidosa e mentirosa que atacou com tanta valentia como exatidão em alguns filósofos de seu tempo no segundo de seus livros, Pourquoi des Philosophes? (1957). O jornalismo que ele praticou significava claridade e verdade, pôr as ideias ao alcance do leitor profano, mas sem as trivializar, mantendo o rigor ao mesmo tempo que a elegância e a originalidade dos bons textos literários. Entretanto, o jornalismo significa também dispersão e fugacidade; talvez por isso, até agora, salvo esporádicos empenhos como o de Pierre Boncenne (Pour Jean-François Revel, 2006), ninguém tinha tentado apresentar de uma maneira sistemática e completa o pensamento político de Revel e o que ele significa no contexto da nossa época.

O professor Philippe Boulanger acaba de fazer isso, de maneira soberba, com um ensaio que, graças a uma pesquisa exaustiva de seus livros, seus artigos, sua correspondência e arquivos depositados na Biblioteca Nacional de Paris, apresenta uma visão de conjunto, coerente e minuciosa, do pensamento político do Revel com o pano de fundo dos grandes debates, crise nacionais e internacionais, conflitos ideológicos, a Guerra Fria e o desabamento do comunismo ocorridos durante a vida do pensador francês: Jean-François Revel. La Démocratie Libérale à l’Épreuve du XXe Siècle.

Em seu intenso rastreamento, Philippe Boulanger mostra, acima de tudo, que as ideias de Revel sobre o fazer político se forjaram sempre a partir de um cotejo constante entre pensamento e realidade, confrontando sem descanso os fatos comprováveis da história vivida e as interpretações ideológicas, adaptando estas àquela, e não acomodando os fatos a ideias ou esquemas abstratos preconcebidos, como fazia o marxismo. Isso foi distanciando cada vez mais Revel de um tipo de socialismo que, a seu ver, distorcia a história para justificar uma ideologia que uma leitura objetiva da realidade desmentia. Mas, e sobre isto Boulanger apresenta provas incontrovertíveis, Revel sustentou durante boa parte da sua vida que o verdadeiro socialismo era inseparável do liberalismo, e que o pecado capital do socialismo francês era ter se esquecido disso, submetendo-se ao marxismo e servindo de reboque para o comunismo. Daí uma das suas teses mais atrevidas: que o comunismo era o maior obstáculo que o socialismo francês tinha para reformar profundamente a França e fazer dela uma sociedade mais livre e ao mesmo tempo mais justa. E daí, também, sua simpatia pelo socialismo sueco e pela social-democracia alemã, que, diferentemente do socialismo francês, nunca tiveram complexos de inferioridade frente ao comunismo na hora de defender a democracia “burguesa”.

Reivindicar o liberalismo na França, na época em que Jean-François Revel e Raymond Aron o fizeram, era não só ir contra a corrente, mas também se indispor ao mesmo tempo com a esquerda e com uma direita conservadora, populista e autoritária representada pela Quinta República e pelo Governo do general De Gaulle. Mas essa orfandade nunca intimidou Revel, polemista e panfletário ao estilo de Voltaire, que ao longo de toda a sua vida opôs aos estereótipos em que queriam enquadrá-lo lapidares respostas que, por um lado, expunham a natureza caudilhista e antidemocrática do regime imposto por De Gaulle, e, por outro, denunciavam a dependência do comunismo francês em relação à União Soviética e a cegueira ou covardia de seus “companheiros de viagem” socialistas e progressistas que se negavam a reconhecer a existência do Gulag, apesar dos deprimentes testemunhos que chegavam ao Ocidente pelos dissidentes, o fracasso calamitoso da economia dirigida e estatizada da União Soviética e da China Popular em elevar os níveis de vida da população e o desaparecimento de todas as liberdades que a chamada ditadura do proletariado e a abolição da propriedade privada acarretavam.

O livro de Boulanger mostra também que o liberalismo de Revel não incorria na perversão economicista de certos economistas supostamente liberais, maus aprendizes de Hayek, logaritmos viventes para quem o livre mercado é a panaceia que resolve todos os problemas sociais. Revel foi, nisto, contundente: para um liberal, a liberdade política e a liberdade econômica são indivisíveis, uma garante a coexistência pacífica e os direitos humanos, e a outra traz desenvolvimento econômico, gera emprego e respeita a soberania individual. Ao mesmo tempo, uma sociedade não alcança nunca a plena liberdade sem uma rica vida cultural, em que possam se manifestar sem pressões nem dirigismos oficiais a criatividade artística e intelectual e o espírito crítico. Para isso é indispensável uma educação de alto nível, privada e pública, pois ela cria a igualdade de oportunidades, essencial para que uma sociedade livre seja também uma sociedade equitativa, digna e genuinamente democrática.

Revel sempre foi um inimigo declarado de toda forma de nacionalismo, um promotor de um governo supranacional, um defensor de uma Europa unida e aberta ao resto do mundo, um defensor da lenta dissolução das fronteiras através dos intercâmbios comerciais e culturais, e alguém a quem seu espírito curioso levou a se interessar por outras culturas, outras línguas – dominava cinco –, e um dos melhores conhecedores da realidade da América Latina, sobre a qual escreveu iluminadores ensaios, refutando seus ingênuos compatriotas que se empenhavam em ver como um modelo de revolução democrática o castrismo e as fantasias guevaristas de colocar o mundo em erupção criando “dois, três Vietnãs”.

Embora a política o apaixonasse, estava convencido de que ela não devia absorver toda uma vida. Em todo caso, ela não esgotava sua inquietação múltipla, sua paixão por conhecer, o que fazia dele um herdeiro direto da grande tradição humanista ocidental. Escreveu uma história da filosofia, centrada sobretudo nos pensadores gregos e latinos e nos renascentistas, para leitores profanos, a qual se lê com o interesse de um livro de aventuras, ensaios sutis e polêmicos sobre Proust, sobre Descartes e, sobre gastronomia, Un Festin en Paroles, no qual mostrou, sem embaraço algum, além de sua ironia e bom humor, sua paixão pela boa mesa e as boas bebidas.

Precisamos agradecer a Philippe Boulanger pelo enorme trabalho que deve ter significado para ele escrever esta formidável biografia intelectual e política de Jean-François Revel. Foi um ato de justiça com um dos pensadores mais agudos e atuais, um dos melhores continuadores de Tocqueville e, ao mesmo tempo, um dos mais injustamente marginalizados em um país onde, apesar de todas as frustrações e fracassos acarretados por se aferrar à tradição anacrônica do Estado forte, grande e intervencionista, compartilhada tanto pela esquerda quanto pela direita, a lição de Revel foi ignorada e negada. Já não será possível continuar a ignorá-lo depois deste admirável reconhecimento de Philippe Boulanger, que demonstrou a riqueza, profundidade e atualidade de suas ideias. (El País).

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